Culpas sem memória
O escrutínio, mais do que um direito, é
uma forma de garantir transparência. E se isso é relevante para um banco
ou uma empresa, é ainda mais quando se trata de um cargo público.
O país parece estar a ser alvo de um violento surto de
esquecimento. Um ataque indiscriminado, que apanha da mesma forma
banqueiros, gestores, auditores, governantes, advogados. Um ataque
violento, mas que está longe de ser súbito. Porque não é de agora, não é
das últimas semanas, não é sequer dos anos mais recentes. É um problema
que vem de trás, de muito tempo atrás. Dos tempos em que, por exemplo,
Ricardo Salgado era presidente do Banco Espírito Santo e se esqueceu de
declarar 8,5 milhões de euros ao Fisco ou aquele presente generoso de um
amigo construtor.
Ou quando Vítor Constâncio era governador do
Portugal e não se lembra de ter sido convocado pelo governo para falar
do caso BPN, já os sinais de alerta soavam. Ou quando um secretário de
Estado do Tesouro, que durou menos tempo no lugar do que a sua falta de
memória, garantiu não se recordar de ter tentado vender ‘swaps' ao
governo português quando ainda trabalhava no Citigroup. O caso BES,
então, tem sido uma sucessão de episódios de amnésia aguda: desde o
‘chairman' da Rioforte que diz não ter tido conhecimento de uma série de
decisões relevantes para a vida da empresa (que seria um dos pilares da
ruína do grupo) até ao administrador financeiro que assumiu sem pudor
desconhecer onde parava uma parte do dinheiro. Agora foi a vez de Zeinal
Bava confessar aos deputados que não guarda memória das aplicações
ruinosas da PT no Grupo Espírito Santo. E até o primeiro-ministro parece
ter sofrido um novo e inesperado lapso de memória: depois do caso
Tecnoforma - em que disse não se recordar de ter recebido ou não
pagamentos da empresa quando era deputado em regime de exclusividade -
reconheceu agora que se esqueceu de pagar à Segurança Social porque não
sabia que era uma obrigação e porque ninguém o notificara por isso.
O
país do "não sei, não me lembro, não vi, não me contaram, não guardo
memória, não participei, não estava a par, não era da minha competência"
e outras negações de responsabilidade, competência ou mesmo culpa, não
começou agora e, infelizmente, não se esgota no colapso do BES, nas
dívidas da PT ou nos incumprimentos de um primeiro-ministro. O
sarcástico "amadorismo" lançado por Mariana Mortágua a Zeinal Bava na
comissão de inquérito ao caso BES foi, por isso, mais do que uma simples
farpa na reputação de um gestor. É também uma crítica à forma como o
país tem escrutinado os seus líderes, sejam eles banqueiros, gestores ou
políticos. E todos temos sido um pouco amadores nessa fiscalização,
desde auditores que deixam passar buracos nas contas, fiscais que deixam
passar dívidas sem cobrança, supervisores que deixam passar problemas
sem os antecipar, investigadores que deixam passar indícios sem os
conseguir, juízes que deixam passar crimes sem os punir, jornalistas que
deixam passar perguntas sem exigir mais (e melhores) respostas.
O
escrutínio, mais do que um direito, é uma forma de garantir a
transparência e precisa de ser cumprido com maior exigência. E se isso é
relevante para um banco ou uma empresa, é ainda mais precioso quando se
trata de um político ou de um cargo público. Parece, por isso, cada vez
mais evidente que esse filtro também deve ser aplicado antes de
qualquer eleição ou nomeação e não depois, quando o dano já está feito -
aí já só sobra (um eventual) perdão e (uma quase certa) penitência. Que
servem a quem? Antecipar lapsos, incumprimentos, pouparia assim o país a
muitos danos, fracassos, desilusões - e também ao deprimente desfile de
portugueses com intrigantes apagões de memória. Se já não serve para
mais, pelo menos que estes casos de ‘amadorismo' sirvam de lição para
futuros (e melhores) escrutínios.
IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
05/03/15
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