Schäuble
O seu rosto grave e circunspecto terá entrado pela
primeira vez na casa de muitas famílias portuguesas em Fevereiro de
2012, quando um repórter da TVI captou uma conversa que se pretendia
discreta de Vítor Gaspar, antes do início da tradicional reunião mensal,
em Bruxelas, dos ministros europeus das Finanças.
O programa de ajustamento da troika levava pouco mais de seis meses
de execução, a economia europeia entrara em recessão e Gaspar já então
sabia que as metas orçamentais acordadas não poderiam ser cumpridas,
apesar de publicamente não o assumir. "Depois de serem tomadas decisões
substanciais sobre a Grécia - isso é essencial - e se nessa altura
houver necessidade de um ajustamento do programa português, estaremos
disponíveis para o fazer", respondeu.
Tornada pública, a troca de palavras entre os dois ministros
bastou para acalmar as taxas de juro da dívida nacional, confirmou que
nada na Europa se faz sem o assentimento alemão - o que não é sinónimo
de que tudo se faça segundo a vontade da Alemanha -, e foi profusamente
interpretada em Portugal como uma demonstração de subserviência,
plasmada na figura curvada do ministro português perante o seu homólogo
alemão que não se dignara a levantar-se para o cumprimentar. Wolfgang
Schäuble está amarrado a uma cadeira de rodas há 24 anos.
Formado em Direito, casado e pai de quatro filhos, o antigo
ministro da Chancelaria e ministro do Interior de Helmut Kohl esteve na
primeira linha das negociações do Tratado que levou à reunificação da
Alemanha. Nove dias depois desse 3 de Outubro de 1990 que mudou o mundo,
um demente disparou três vezes sobre o seu corpo. A ferida no rosto
permanece, mas fechou; já a lesão na medula provocou uma mudança
tragicamente irreversível no seu quotidiano.
"O melhor chanceler que a Alemanha nunca teve", na expressão de Ian
Traynor, editor de Europa do The Guardian, poderá dever essa
circunstância ao facto de ser um "aleijado", mas também ao envolvimento
no escândalo de financiamento oculto que abalou a CDU no final da década
de 90, destronando Helmut Kohl do pedestal dos intocáveis e abrindo a
porta à ascensão algo inesperada de Angela Merkel, que o substituiu após
dois curtos anos à frente do partido. O genuíno delfim de Köhl nunca
escalou até ao topo da montanha. Mas nunca ficou longe. À adversidade,
trata-a por tu. À política, também.
Conta Hans-Peter Schütz, que publicou uma biografia sua em 2012,
que dois dias depois da tentativa de assassinato pediu à mulher que lhe
passasse a ler os jornais junto à cama do hospital. E, quando ainda mal
falava, começou a ditar trechos do que viria a ser um livro sobre a
unificação alemã. "É totalmente viciado em política". Ulrike Guérot, do
Conselho Europeu de Relações Exteriores, de Berlim, que trabalhou de
perto com Schäuble nos anos 90 na sede da CDU, acrescenta: "Ele
sacrificou-se pelo país. Trabalha 70 horas por semana."
Exigência máxima. Pavio curto.
No fim dessa imensa entrega e de exigência consigo mesmo, há um pavio
muito curto. Em Novembro de 2010, um mês depois de ter passado quatro
semanas internado por causa de uma ferida que não sarava e que alimentou
rumores de iminente demissão, suspendeu uma conferência de imprensa
depois de ter publicamente repreendido o seu porta-voz por este não ter
entregue a tempo o dossiê de "background" aos jornalistas. Cinco dias
depois, Michael Offer apresentou a demissão. Nessa mesma semana,
Schäuble reconheceu que "talvez tenha exagerado", mas já muita tinta
havia corrido em torno das suas tiradas irascíveis que pontuam o jeito
lúdico e quase alegre com que faz política.
À excepção de Jean-Claude Juncker, o ex-primeiro-ministro do
Luxemburgo agora na presidência da Comissão, Schäuble é o único político
da União Europeia ainda em funções que assistiu ao nascimento do euro
em Maastricht, em 1992. Aos 72 anos é também o mais longevo parlamentar
alemão. "É o único que resta no Governo que conhece toda a História",
assegura Guérot à Der Spiegel.
Depois de ter sido também seu ministro do Interior, é desde 2009
ministro das Finanças dos sucessivos governos Merkel que, sendo a "CEO"
da maior economia europeia, não dará um passo sem ouvir
o verdadeiro "chairman", muito embora lhe tenha travado o caminho para
chegar à presidência do país. "Eles não são amigos. Estão unidos por
lealdade. Dependem um do outro", relata Schütz.
Luterano e devoto de Bach, Schäuble esteve desde o primeiro dia
na torre de controlo da gestão da crise do euro. Curiosamente, tem uma
espécie de plano de salvação, escrito há quase duas décadas. Em 1994,
ainda sem euro e com a Europa a Doze, o à época presidente do grupo
parlamentar no Bundestag publicou um controverso "paper" a quatro mãos com Karl Lammers,
também membro da CDU, em que defendia a inevitabilidade de um "núcleo
duro" numa Europa progressivamente alargada, e a necessidade de uma
economia e moeda transnacionais serem alicerçadas em instituições
submetidas a uma legitimação democrática, também ela transnacional.
Um Tesouro, um ministro das Finanças, um parlamento especial para o euro, é a estrutura da nova Europa
que há muito tem na cabeça. "Não defendo um superestado". "No cenário
óptimo, deveríamos ter um ministro europeu das Finanças com poder de
veto sobre propostas de Orçamento dos Estados e por quem teria de passar
a aprovação de novo endividamento. Mas continuaria a ser cada país a
decidir como aplicar essa margem orçamental. No fundo, saber se devemos
apoiar mais as famílias ou a construção de infra-estruturas será uma
escolha sempre nacional", dizia à Der Spiegel, em Junho de 2012. Nesse
contexto de maior integração política, mecanismos de mutualização de
dívida é algo que o ministro não rejeita. Dois anos depois, Schäuble
confirma que não é a cadeira de rodas que lhe tira a pressa. Por sua
vontade, diz ao Negócios, um ministro das Finanças do euro seria
decidido "amanhã".
Esse "amanhã" exigirá, porém, referendos, também na Alemanha,
onde nunca houve consultas sobre o euro porque sempre se pressentiu a
vitória do "não". Esse "amanhã" dificilmente será, portanto, no seu
tempo. Nesse "amanhã", Schäuble acaba por revelar o desprendimento de um
homem que nada tem a perder, que conseguiu quase tudo o que desejava,
mas que também já não poderá ter o que mais queria.
PS: O Negócios publicou este perfil
em Junho de 2014, na sequência da entrevista ao ministro alemão. Volto a
publicar este meu texto aqui e agora porque me dou conta de que a
argumentação está demasiadas vezes com demasiada virulência a ser
trocada pela estigmatização. Faço-o na expectativa de que, revelada a
riqueza do personagem, mais se revele a pobreza da caricatura.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
26/02/15
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