23/01/2015

ANA GOMES

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Sobre a liberdade

Vivemos num mundo interdependente e globalizado, em sociedades multiculturais - a minha liberdade de expressão tem de ser inteligente e ter em conta a sensibilidade de outros
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Reagi no Twitter, na hora em que tive conhecimento do ataque terrorista ao “Charlie Hebdo” no passado dia 7, expressando horror e sublinhando que o terrorismo hoje é também resultado da Europa que temos, com políticas austeritárias destruindo a intervenção social dos estados, fomentando o desemprego que faz desintegrar famílias, alimentar a marginalização social e a alienação individual – factores propícios ao recrutamento terrorista. 
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Em comentários subsequentes, sublinhei ser preciso compreender as razões por que cerca de 3 mil jovens europeus são atraídos para as fileiras terroristas e cometem hoje atrocidades na Síria e no Iraque – como me foi sublinhado por tantas vítimas, em visita que fiz à linha da frente contra o chamado Estado Islâmico no Curdistão iraquiano a semana passada. Entre outras causas está sem dúvida a falta de oportunidades e o sentimento de marginalização afectando comunidades emigrantes na Europa, como nos confirmam as histórias de vida da maioria dos jovens recrutados, incluindo portugueses. Também fiz notar que as políticas austeritárias têm diminuído os meios financeiros, humanos e outros, facultados aos serviços de informação e de segurança na Europa para serem mais eficazes no combate ao terrorismo, bem como disponibilizados para programas de prevenção da radicalização e de desradicalização. 
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De tudo o que escrevi no Twitter nesse dia e nos dias seguintes, assumindo solidariamente o “Je suis Charlie”, e de tudo o que tenho dito, escrito e feito como deputada europeia, fica claro que condenei e condeno em termos veementes os actos terroristas de Paris e quaisquer outros, onde quer que tenham lugar, sejam contra quem forem, praticados por quem quer que seja.  
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Sublinho que me fiz membro da Subcomissão de Segurança e Defesa do PE desde que fui eleita pela primeira vez, em 2004, justamente pelo interesse em compreender e combater o terrorismo. Esse interesse resultava da experiência que vivi na Indonésia, entre 1999 e 2003, anos em que o povo daquele país se viu frequentemente golpeado por organizações terroristas ligadas à Al-Qaeda. A bomba de Bali, em Outubro 2002, que causou mais de 200 mortos e em que perdeu a vida o soldado português Diogo Ribeirinho, obrigou-me, como representante de Portugal, a percorrer  morgues improvisadas a inspeccionar restos de corpos, na tentativa de localizar algum vestígio que identificasse o do nosso compatriota – a experiência macabra marcou-me profundamente e determinou-me a tudo fazer para combater o terrorismo. 
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Nesse esforço, ao longo dos anos visitando sociedades acossadas pelo terrorismo, compreendi que é profundamente errado amalgamar terrorismo com islão ou com emigração, como faz agora a extrema-direita europeia para suscitar medidas antidemocráticas nas águas turvas do medo e da ignorância dos cidadãos. Por isso também, combati a deriva securitária da administração George W. Bush, que implicou tortura, prisões secretas e Guantanamo: expliquei que só daria mais recrutas e narrativa aos terroristas, além de descer ao nível  dos terroristas, que querem precisamente destruir as liberdades fundamentais, os direitos humanos e a democracia. 
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No mesmo propósito de combater o terrorismo, mal ouvi divulgar em França que a capa da primeira edição do “Charlie Hebdo” depois do ataque terrorista seria um cartoon com um boneco representando o Profeta Maomé, voltei a escrever no Twitter, questionando “Porquê insistir na representação do Profeta, que se sabe ofender os muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome”.  
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Ao contrário do que V. sustenta no editorial “Há limites, claro que há limites” da edição de sábado/domingo passado, entendi escrevê-lo naquele momento não para “desculpabilizar os terroristas [...] vacilar quando não há tréguas possíveis [...] abrir a porta a um acobardamento que matará a prazo tudo aquilo em que acreditamos”. Não procurei justificar ou desculpar os hediondos actos terroristas em Paris, nem defendo que vacilemos diante do terrorismo, nem que abdiquemos das liberdades em que acreditamos. Procurei, sim, avisar quanto à provocação desnecessária que poderia degenerar numa escalada de violência: e já hoje lamentamos mortos e igrejas destruídas no Níger, jornalistas franceses atacados no Paquistão, cristãos e europeus ameaçados e receosos em diversos países... 
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Procurei fazer ver que responder ao terrorismo eficazmente implica ter connosco a comunidade muçulmana, que é quem conta mais vítimas às mãos das organizações terroristas que perversamente se reclamam do islão (mais de 60%). Implica não a gozar, não a ofender – gostemos ou não, concordemos ou não, é sabido que representar o Profeta Maomé viola o que há de mais sagrado para os muçulmanos. Porquê responder provocatoriamente com a imagem, ainda que exalando perdão e compaixão? Porquê identificar o boneco como o Profeta e não como um qualquer Maomé, como os milhares que dias antes tinham estado nas ruas de França a gritar “Je suis Charlie, je suis Ahmed” condenando o assassinato dos jornalistas, dos judeus, dos polícias e de outros caídos às mãos dos terroristas? Porquê alienar os muçulmanos quando tanto precisamos deles para que denunciem como anti-islão os actos de organizações terroristas que perversamente se reclamam do islão? 
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Vivemos num mundo interdependente e globalizado, em sociedades multiculturais – a minha liberdade de expressão tem de ser inteligente e ter em conta a sensibilidade de outros. A minha liberdade de ter ou não ter religião (e eu não tenho) tem de ser respeitosa do que é sagrado para outros. Há limites, sim:  sem tolerância não há liberdade. Haverá regressão civilizacional, que é o que desejam a extrema-direita xenófoba, islamofóbica e anti-semita na Europa, e é o que desejam grupos terroristas irmanados na hidra Al-Qaeda. Eu não quero fazer o jogo de uns nem de outros. E como cidadã e deputada eleita tenho a obrigação de não me deixar intimidar pelo que parece, no momento, “politicamente correcto”, mas é incorrecto, insensato e perigoso. Tenho a obrigação de alertar quem não perceba que, estando em causa a nossa segurança, está em causa também a nossa liberdade. 

IN "i"
21/01/15


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