Só o salário é mínimo
Se
os compromissos com os credores fossem mesmo para cumprir - como tanto
sublinha quem nos governa - os trabalhadores portugueses já deviam
receber 500 euros de salário mínimo desde 2011. Foi esse o compromisso
assumido pelo governo português de então, mas a verdade é que, por estas
e por aquelas, nem ele nem o seu sucessor alguma vez o honraram.
Sócrates invocou como desculpa a crise que então estalava. E Passos
Coelho radicalizou o argumento com fanatismo ideológico: em março de
2013 afirmava que "elevar, nesta altura, o salário mínimo nacional em
Portugal seria criar um sobrecusto para as empresas e, portanto, criar
mais uma barreira para o emprego", pelo que "a medida mais sensata que
se pode tomar é exatamente a oposta".
Passaram três anos. E na
mesma semana em que ficámos a saber que a família Espírito Santo recebeu
cinco milhões de euros de comissões do negócio dos submarinos, o
governo fez soar trombetas sobre a sua extrema generosidade e o seu
apuradíssimo sentido social e aumentou o salário mínimo líquido em 17
euros. Com mais de três anos de atraso. Mas quando não há mais nada para
mostrar em ano de eleições - o mito da retoma é cada vez mais isso
mesmo, mero mito, e o incumprimento das metas anunciadas para o défice
torna-o ainda mais penalizador -, renegar a demonização anterior é o
menor dos males.
Ora, com esta subida do salário mínimo, o
governo menorizou danos políticos próprios e danos económicos alheios.
Do patronato, só podia. Associar a subida do salário mínimo à redução da
parte dos patrões na taxa social única é, na verdade, um sinal político
de grande importância: o governo mostra inflexibilidade no propósito de
não reequilibrar minimamente o que desequilibrou maximamente - a
distribuição de rendimento entre o trabalho e o capital. Esta redução
dos encargos dos patrões como contrapartida de um aumento indigno de um
salário mínimo indigno configura uma negociata política indigna. Foi
negociata, sim. Para obter os seus dividendos políticos, o governo nem
se importou de reduzir a concertação social a uma caricatura de si
própria, com a cumplicidade da prestável UGT. Sempre lesto a revelar os
segredos que o poder quer que sejam do domínio público, Marques Mendes
confidenciou a centenas de milhares de portugueses que tudo se resumiu a
um acordo trabalhado num "encontro privado, com muito sigilo" entre
Passos e o presidente da UGT. Concertação coisa nenhuma - com este
negócio à sorrelfa, as profissões de fé do PSD e do CDS nas virtudes do
diálogo social mostraram o que realmente valem.
A única entidade
verdadeiramente sincera e transparente em todo este processo foi a
Comissão Europeia, justiça lhe seja. A ousadia de subir (mesmo sem
calendário definido...) um dos salários mínimos nacionais mais baixos da
União Europeia fez soar as campainhas de alarme em Bruxelas. Que não,
que é perigoso, que só se não houver subida geral da massa salarial, que
nem pensar em dar sinais errados ao povo porque a correção do défice é
que é. Pois. Em nome do que não aconteceu nem vai acontecer, a Comissão
põe o governo em sentido e ameaça-o com castigo se lhe ocorrer
lembrar-se dos pobres. É por estas e por outras que ninguém quer ser
amigo da troika e que mesmo os seus mais zelosos servidores, como Carlos
Moedas, juram a pés juntos que sempre acharam que aquilo não era gente
de fiar e que as discordâncias foram tantas, que nem se lembram de
quantas foram ao certo.
Há, todavia, algo nisto tudo que não deixa
de me causar perplexidade: tanto segredo, tanta engenharia financeira,
tanto alarme só por 17 euros a mais no bolso de um pobre?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/12/14
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