Números e causas
da desigualdade
Que estamos mais pobres, não há grande dúvida -
nós e boa parte do velho primeiro mundo. Mas estaremos, os portugueses,
mais pobres e ainda menos iguais? Terão as políticas de austeridade
agravado as desigualdades?
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Uma das primeiras instituições que tentaram responder a esta pergunta foi o FMI. Nos seus cálculos,
entre 2008 e 2012 - período que começa logo a
seguir à crise financeira e que termina ainda com a troika cá dentro -,
Portugal foi um dos países que seguiram políticas mais progressivas, ou
seja, que penalizaram mais as famílias com maiores rendimentos. Sustenta
o FMI que as medidas destinadas à redução do défice público geraram uma
perda média de 6,3% no rendimento disponível (na Grécia, por exemplo,
a redução foi de 11,6%), tendo os 20% mais pobres perdido 5% enquanto
os 20% mais ricos perderam o dobro, um pouco mais de 10%.
Na semana passada, a OCDE divulgou uma tabela comparativa que abrange sensivelmente o mesmo período e que converge para conclusões idênticas: o
rendimento real disponível dos portugueses (descontados os impostos e a
variação dos preços) encolheu, em média, 2,3% por ano. Esse
empobrecimento foi mais acentuado na Grécia (-8,3%), na Irlanda (-4,2%) e
até em Espanha (-3,6%). E, ao invés do que sucedeu nestes três países,
em Portugal os 10% mais ricos perderam mais (3,7%) do que os 10% mais
pobres (1,9%).
Os indicadores de desigualdade mais recentes do Eurostat e INE
resultam de inquéritos realizados em 2013 sobre os rendimentos de 2012 e
descrevem uma evolução
menos consistente. O coeficiente de Gini desceu de 0,345 em 2008 para
0,342 em 2012, o que significa que o país está menos desigual quando se
observa como a população se distribui ao longo de toda a curva de
rendimentos. Já quando se comparam os extremos, a distância de
rendimento entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres manteve-se
(em seis) mas o fosso entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres
aumentou, de 10,3 para 10,7 – ou seja, os 10% mais ricos tinham, em
2012, quase 11 vezes mais do que os 10% mais pobres.
Que estamos mais pobres mas não mais desiguais é, portanto, uma
conclusão frágil mas perfeitamente possível. A não ser que a comparação
do Gini (considerado o indicador maior da desigualdade) tenha por
referência 2009, precisamente o ano escolhido por uma professora de
economia que escreve no Expresso para acusar o primeiro-ministro de
estar "no mínimo equivocado" - tivesse Aurora Teixeira escolhido
qualquer ano mais para trás ou para a frente e ter-se-ia dado conta de
que a sua conclusão estaria, no mínimo, tão equivocada quanto a de
Passos Coelho. Ou seja, a narrativa pode ser positiva ou negativa
dependendo do ano escolhido para começar a contar a história recente da
desigualdade em Portugal.
Inequívoca é a constatação de que sempre fomos um dos povos mais
desiguais da Europa - quando não fomos mesmo "o" mais desigual. Foi o
caso em 2005. Nesse ano, com a economia a crescer quase 1% (em 2012 caiu
3,2%) e com o desemprego abaixo de 9% (em 2012 saltou para 15,5%),
Portugal foi o recordista da desigualdade na
União Europeia, à frente de Bálticos, Roménia e Bulgária, com o Gini a
atingir 0,381 e os 10% mais ricos a acumular rendimentos 12 vezes
superiores aos dos 10% mais pobres.
Porque é que isto acontece?
Foi também o FMI quem, no início de 2013, primeiro ensaiou uma tentativa de resposta, e,
embora haja muitos factores onde se podem procurar explicações para as
assimetrias (níveis salariais e de instrução díspares, carga fiscal mal
distribuída, evasão fiscal, corrupção), o Fundo foi directo à forma como
são repartidas as verbas públicas postas ao serviço do Estado social.
E a conclusão foi a de que "por comparação com vários outros
países da OCDE e da UE, as transferências sociais em Portugal asseguram
mais benefícios aos grupos sociais com maiores rendimentos, agravando as desigualdades".
Em 2009, ano que tomam por referência, os 20% mais ricos receberam
33,8% de todas as prestações sociais enquanto os 20% mais pobres
receberam apenas 13,2%. Em média na UE, o quintil superior recebeu 24,8%
das prestações sociais, enquanto o quintil inferior ficou com 16,3%.
Há duas semanas, usando agora dados de 2011, a OCDE chegava a uma conclusão
semelhante: em Portugal, 40% das transferências sociais em dinheiro são
canalizadas para os 20% mais ricos. Apenas o México apresenta uma
concentração maior no quintil de topo da distribuição do rendimento
(cerca de 55%). Para os 20% mais pobres, Portugal destina pouco mais de
10% do total das transferências em dinheiro. Na Austrália, Noruega e
Dinamarca a proporção é a inversa.
Porque falham tanto as políticas sociais em Portugal na missão de contribuir para uma sociedade mais igualitária?
Mais de 80% do total das transferências sociais são pensões, e é graças a elas que muitos pensionistas escapam à pobreza e que os mais idosos têm também consolidado o seu estatuto de grupo etário relativamente mais rico.
Sucede que o sistema de pensões padece de vários entorses: "protege a
actual geração de reformados enquanto coloca o fardo do ajustamento nos
seus filhos e netos" e nem sequer é equitativo no presente, porque "40%
da despesa com pensões beneficia os 20% que têm rendimentos mais
altos", concluía então o FMI.
Parte da explicação desta assimetria reside no facto de os
ex-funcionários públicos, que representam cerca de 15% de todos os
aposentados, absorverem 35% de todos os gastos em pensões. "A pensão
média da Caixa Geral de Aposentações (1.146 euros vezes 14 meses) é
quase três vezes maior do que a pensão média no regime geral da
Segurança Social (393 euros)". Mesmo assumindo que na vida activa tenha
auferido o mesmo e realizado os mesmos anos de desconto, um reformado do
sector público recebe uma reforma 15% superior à de um trabalhador do
privado, concluia o Fundo.
Vivemos num país onde os quase três milhões de aposentados e reformados são hoje - e sê-lo-ão durante largos anos – o grupo eleitoralmente mais cobiçado, porque decisivo; e onde um Presidente da República, feitas as contas, optou por trocar o
salário que destinamos ao mais alto dignatário da Nação pela reforma
que trouxera do Banco de Portugal. Da próxima vez que ouvir Bagão Félix,
Manuela Ferreira Leite, Freitas do Amaral ou Maria do Rosário Gama
defenderem o "mexilhão", pense nisto.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
18/12/14
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