14/12/2014

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ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"

Traficantes de chifres de rinoceronte
. assaltam em Portugal

Passavam poucos minutos das 10h de dia5 de Abril de 2011. Três homens tinham-se instalado à porta da galeria de zoologia do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. O mais velho, com cerca de 50 anos, cabelo ruivo, maçãs do rosto avermelhadas e pronúncia irlandesa perguntava a quem passava como podiam ver "os troféus de caça". Quando soube disso, uma funcionária decidiu explicar-lhes que o museu só podia ser acedido com marcação mas que, como estava agendada uma visita para essa manhã, poderiam acompanhá-la. Eles esperaram.
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No entanto, a visita foi cancelada. "A colega da recepção disse-me que adecisão era minha.Decidi mostrar-lhes a exposição na mesma", conta à SÁBADO a funcionária, que pediu para não ser identificada por receio de represálias. O Museu de História Natural é composto por sete salas seguidas, cada uma com a sua própria colecção. Para acender as luzes de cada divisão, é preciso primeiro atravessar a anterior. "Ia avançando para acender as luzes, mas o único dos três que falava vinha sempre junto a mim enquanto os outros ficavam para trás. Achei que estavam a fotografar os exemplares, mas não pareciam muito interessados", recorda a mesma funcionária. Foi assim até chegarem à última sala.

A divisão, com chão em azulejo e pesadas cortinas bordeaux, reúne o núcleo da colecção Domingos Vandelli, o primeiro director do museu de História Natural e do Laboratório Químico da Universidade, que no século XIX, vendeu o seu espólio à instituição. Aí, vários exemplares de taxidermia – um urso, araras, tucanos, urubus e tartarugas – partilhavam o espaço com peças em marfim: um dente de narval, outro de hipopótamo, um de elefante e dois chifres de rinoceronte.

Os três homens demoraram-se mais nesta divisão. Tiraram fotografias, fizeram perguntas e saíram. Ao todo, a visita demorou 10 minutos. "No regresso achei estranho ele querer saber se emprestávamos coisas para o fim-de-semana. Quando quis saber se tinham gostado, ele disse que sim e que ia voltar coma família", conta a funcionária. Quinze dias depois, a 20 de Abril, na semana da Páscoa, uma bolseira reparou que a porta do museu estava aberta. Estranhou. Quando se aproximou viu que a fechadura tinha sido forçada e telefonou ao director adjunto do museu. "Foi falando comigo enquanto percorria as salas", recorda Pedro Casaleiro à SÁBADO. Parecia não faltar nada. Até chegar à última divisão. Os chifres de rinoceronte tinham desaparecido.

A ligação irlandesa
O responsável ligou imediatamente à Polícia Judiciária (PJ) de Coimbra. Quando foram analisar as imagens de videovigilância da véspera, viram dois homens, com bonés que lhes tapavam as caras, a percorrer as divisões do museu na penumbra. Dirigiram-se à última sala, forçaram a porta da vitrina e tiraram os dois chifres. Como eles não cabiam nas mochilas, despiram os casacos, enrolaram-
nos e continuaram. Depois de verem se o caminho estava livre, encostaram a porta, desceram três lances de 14 degraus, um de 12 e
saírampara a rua.

Ao todo, estiveram nas instalações sete minutos. Teria sido quase impossível identificá-los se não tivessem cometido um erro: "No caminho para a saída, um agarrou num telemóvel", diz Pedro Casaleiro. Foi o suficiente para a PJ. Depois de pedirem às
operadoras os dados das chamadas feitas naquele minuto, naquela zona, identificaram um número que participou numa chamada
internacional para a Irlanda. "Fizemos logo a relação com os visitantes anteriores", conta Pedro Casaleiro.

Um dos primeiros passos dos investigadores foi pedir informações a congéneres europeias. A Europol já estava a acompanhar o fenómeno. Meses depois, a 7 de Julho, emitiu um comunicado em que dizia ter identificado um "grupo de crime organizado que comercializava ilegalmente chifres de rinoceronte", composto por irlandeses conhecidos por "usar intimidação e violência" e que tinha como alvos "antiquários, leiloeiras, galerias de arte, museus, colecções privadas e zoos". Apesar de activo em todo o mundo, o grupo tinha uma base: a localidade de Rathkeale, na Irlanda.

Um negócio milionário
A ligação ao assalto de Coimbra era óbvia. "Trata-se de um grupo de criminosos itinerantes que descobriu um nicho que dava pouco trabalho e grandes lucros", explica à SÁBADO Fernando Ramos, o coordenador da secção de obras de arte e incêndios da PJ de Coimbra. De acordo com a Europol, um chifre de rinoceronte pode valer entre 25 mil euros e 200 mil euros. Depende, sobretudo, do peso. "No mercado negro chegam a atingir 50 mil euros o quilo. Mais do que a cocaína", diz Fernando Ramos. O seu destino será o mercado asiático, onde se acredita, erradamente, que têm propriedades afrodisíacas e medicinais. "Na verdade equivale a roermos as nossas as unhas", diz à SÁBADO o porta-voz da Europol, Søren Pedersen.

Além do número de telemóvel utilizado no assalto, os inspectores da PJ recorreram aos contactos privilegiados entre antiquários. Foi assim que souberam que, na época, tinham começado a aparecer na Rua de São Bento, em Lisboa, conhecida pelas lojas de antiguidades, grupos de irlandeses interessados em chifres de rinoceronte.

A maioria dos antiquários contactados pela SÁBADO não quis falar sobre essas visitas. O único que aceitou fazê-lo pediu o anonimato
por receio de represálias. "Chegavam em grupos de cinco ou seis. Estacionavam os carros, dividiam-se e percorriam as lojas todas",
conta. "Começavam por perguntar se tínhamos coisas em marfim, tartaruga e no fim de rinoceronte – para não mostrar demasiado interesse. Eram insistentes e deixavam cartões, com o telefone", recorda. "Diziam que pagavam bem, julgo que uns 12mil euros o quilo", diz.

Apreensão no aeroporto
Graças às informações recolhidas, a 3 de Setembro desse ano, os inspectores da PJ detiveram, no aeroporto de Lisboa, dois australianos, pai e filho, que se preparavam para embarcar num voo para Dublin com oito chifres de rinoceronte na mala. "Trata-se de intermediários, com lojas de antiguidades na China", recorda Fernando Ramos. "Tinham com eles vários certificados internacionais que não tinham relação com os chifres", adianta o inspector-chefe Óscar Pinto, coordenador da brigada de obras de arte da PJ de Lisboa.

Estes oito chifres foram levados para Coimbra – onde ainda se encontram, guardados no cofre da PJ. "Fomos chamados para os identificar. Infelizmente não eram os nossos", lamenta Pedro Casaleiro. Ao que a SÁBADO apurou, o processo, que decorre no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, aguarda o cumprimento de cartas rogatórias para ser deduzida acusação. Além dos australianos, em Março de 2013 foi extraditado para Portugal um irlandês detido na Alemanha e constituídos arguidos vários negociantes de arte.

No entanto, este não foi o único caso registado em Portugal. A 15 de Maio de 2012, dois homens dirigiram-se ao Mosteiro de Singeverga, em Roriz, Santo Tirso, para visitar o Museu de Etnografia e Zoologia de Angola. "Ligaram para marcar uma visita de 20 e tal estudantes universitários de Lisboa", recorda à SÁBADO o padre Agostinho Machado que, na época, era o prior-administrador do mosteiro. "No entanto, só apareceram dois", diz.

A responsabilidade pela visita foi entregue ao padre Adriano. Os três percorreram o corredor que dá para o museu mas, antes que o clérigo pudesse abrir a porta, um dos jovens agarrou-o pelo pescoço. "O que estava livre entrou, foi directo ao sítio onde estava o chifre, tirou-o da parede e fugiram", lembra Agostinho Machado. O clérigo, já idoso, ficou no chão. Quando recuperou e pediu ajuda era tarde demais. Os dois assaltantes – ambos negros – tinham desaparecido.

Perdidos para sempre
O inquérito foi arquivado. "Vimos tudo", recorda à SÁBADO fonte judicial. A ausência de testemunhas e a inexistência de câmaras de vigilância no edifício e nas redondezas dificultaram o trabalho dos investigadores. O objecto roubado estava avaliado em cerca de 20 mil euros. Nunca mais foi recuperado.

Nessa época, há dois anos, os furtos de chifres de rinoceronte na Europa estavam no auge. "Após o assalto de Coimbra, a maioria dos museus que tinham estes objectos retiraram-nos de exposição", recorda à SÁBADO o inspector-chefe Óscar Pinto. Só quando se sentiram seguros é que voltaram a expô-los. Foi o caso do Museu de Caça, da Fundação da Casa de Bragança, em Vila Viçosa.

O museu fica no castelo, ao qual apenas se acede por uma ponte levadiça, seguida de uma praça e de um túnel por onde não passam carros à noite. As portas de madeira maciça, o alarme e o sistema de videovigilância pareciam uma garantia de segurança total. Nada mais enganador. Na madrugada de 7 de Janeiro de 2013, dois homens com luvas, chapéus e uma marreta arrombaram a porta principal do edifício, deitaram abaixo uma porta intermédia e, por último, abriram a que dá acesso à sala do primeiro andar onde estão expostos diversos exemplares de caça. Numa das paredes estavam 12 chifres. Os homens retiraram dois pares e arrancaram um exemplar de outro par. Depois fugiram. Tudo enquanto o alarme alertava a Guarda Nacional Republicana local.

"Não estiveram lá mais do que alguns minutos", recorda o inspector-chefe Óscar Pinto. "Foi um trabalho profissional. Fizemos tudo para os descobrir. Infelizmente, não conseguimos", lamenta. Ao que a SÁBADO apurou, a Judiciária tem em curso mais duas investigações.

Uma pelo roubo de 13 chifres de uma moradia, emMafra, e outra pelo uso de notas falsas para comprar exemplares de um particular. As autoridades terão ainda conhecimento de mais duas situações em que privados foram atraídos a locais públicos para vender os objectos e acabarampor ser assaltados. No entanto, os casos não estarão a ser investigados por não ter sido apresentada queixa, já que os chifres em causa não estariam legalizados.

Esta tem sido uma das preocupações das autoridades: alertar a população para o valor destes objectos e para os perigos de vendas a desconhecidos. "Depois de várias visitas, estes grupos acabaram por encontrar intermediários de confiança que os levaram a todo o País", explica o inspector-chefe Fernando Ramos. "Têm contactos entre os antiquários e quando aparece alguém interessado em vender marcam um encontro. Em alguns casos chegaram a colocar anúncios nos jornais a dizer que compravam chifres. Depois, ou pagam um valor baixo porque as pessoas não têm noção do valordas peças ou acabam por assaltá-las", continua. Algo que faz de Portugal um país muito atractivo para estes grupos. "Devido ao passado colonial, podemos ser o país da Europa com mais chifres de rinoceronte em casas particulares", frisa Óscar Pinto.

*  Em Portugal pode roubar-se tudo, até cornos.


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