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ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
"SÁBADO"
Traficantes de chifres de rinoceronte
. assaltam em Portugal
Passavam poucos minutos das 10h de dia5 de Abril de 2011. Três
homens tinham-se instalado à porta da galeria de zoologia do Museu da
Ciência da Universidade de Coimbra. O mais velho, com cerca de 50 anos,
cabelo ruivo, maçãs do rosto avermelhadas e pronúncia irlandesa
perguntava a quem passava como podiam ver "os troféus de caça". Quando
soube disso, uma funcionária decidiu explicar-lhes que o museu só
podia ser acedido com marcação mas que, como estava agendada uma visita
para essa manhã, poderiam acompanhá-la. Eles esperaram.
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No entanto, a visita foi cancelada. "A colega da recepção
disse-me que adecisão era minha.Decidi mostrar-lhes a exposição
na mesma", conta à SÁBADO a funcionária, que pediu para não
ser identificada por receio de represálias. O Museu de História Natural
é composto por sete salas seguidas, cada uma com a sua própria
colecção. Para acender as luzes de cada divisão, é preciso primeiro
atravessar a anterior. "Ia avançando para acender as luzes, mas o único
dos três que falava vinha sempre junto a mim enquanto os outros
ficavam para trás. Achei que estavam a fotografar os exemplares, mas não
pareciam muito interessados", recorda a mesma funcionária. Foi assim
até chegarem à última sala.
A divisão, com chão em azulejo e pesadas cortinas bordeaux, reúne
o núcleo da colecção Domingos Vandelli, o primeiro director do museu de
História Natural e do Laboratório Químico da Universidade, que no
século XIX, vendeu o seu espólio à instituição. Aí, vários exemplares de
taxidermia – um urso, araras, tucanos, urubus e tartarugas
– partilhavam o espaço com peças em marfim: um dente de narval, outro de
hipopótamo, um de elefante e dois chifres de rinoceronte.
Os três homens demoraram-se mais nesta divisão. Tiraram
fotografias, fizeram perguntas e saíram. Ao todo, a visita demorou 10
minutos. "No regresso achei estranho ele querer saber se
emprestávamos coisas para o fim-de-semana. Quando quis saber se tinham
gostado, ele disse que sim e que ia voltar coma família", conta a
funcionária. Quinze dias depois, a 20 de Abril, na semana da Páscoa, uma
bolseira reparou que a porta do museu estava aberta. Estranhou. Quando
se aproximou viu que a fechadura tinha sido forçada e telefonou ao
director adjunto do museu. "Foi falando comigo enquanto percorria as
salas", recorda Pedro Casaleiro à SÁBADO. Parecia não faltar nada. Até
chegar à última divisão. Os chifres de rinoceronte tinham desaparecido.
A ligação irlandesa
O responsável ligou imediatamente à Polícia Judiciária (PJ) de
Coimbra. Quando foram analisar as imagens de videovigilância da véspera,
viram dois homens, com bonés que lhes tapavam as caras, a percorrer as
divisões do museu na penumbra. Dirigiram-se à última sala, forçaram a
porta da vitrina e tiraram os dois chifres. Como eles não cabiam
nas mochilas, despiram os casacos, enrolaram-
nos e continuaram. Depois de verem se o caminho estava livre, encostaram a porta, desceram três lances de 14 degraus, um de 12 e
saírampara a rua.
Ao todo, estiveram nas instalações sete minutos. Teria sido quase
impossível identificá-los se não tivessem cometido um erro: "No
caminho para a saída, um agarrou num telemóvel", diz Pedro Casaleiro.
Foi o suficiente para a PJ. Depois de pedirem às
operadoras os dados das chamadas feitas naquele minuto, naquela zona, identificaram um número que participou numa chamada
internacional para a Irlanda. "Fizemos logo a relação com os visitantes anteriores", conta Pedro Casaleiro.
Um dos primeiros passos dos investigadores foi pedir informações a
congéneres europeias. A Europol já estava a acompanhar o fenómeno. Meses
depois, a 7 de Julho, emitiu um comunicado em que dizia
ter identificado um "grupo de crime organizado que comercializava
ilegalmente chifres de rinoceronte", composto por irlandeses
conhecidos por "usar intimidação e violência" e que tinha como alvos
"antiquários, leiloeiras, galerias de arte, museus, colecções privadas e
zoos". Apesar de activo em todo o mundo, o grupo tinha uma base: a
localidade de Rathkeale, na Irlanda.
Um negócio milionário
A ligação ao assalto de Coimbra era óbvia. "Trata-se de um grupo
de criminosos itinerantes que descobriu um nicho que dava pouco
trabalho e grandes lucros", explica à SÁBADO Fernando Ramos, o
coordenador da secção de obras de arte e incêndios da PJ de Coimbra.
De acordo com a Europol, um chifre de rinoceronte pode valer entre
25 mil euros e 200 mil euros. Depende, sobretudo, do peso. "No
mercado negro chegam a atingir 50 mil euros o quilo. Mais do que a
cocaína", diz Fernando Ramos. O seu destino será o mercado
asiático, onde se acredita, erradamente, que têm propriedades
afrodisíacas e medicinais. "Na verdade equivale a roermos as nossas
as unhas", diz à SÁBADO o porta-voz da Europol, Søren Pedersen.
Além do número de telemóvel utilizado no assalto, os inspectores
da PJ recorreram aos contactos privilegiados entre antiquários. Foi
assim que souberam que, na época, tinham começado a aparecer na Rua de
São Bento, em Lisboa, conhecida pelas lojas de antiguidades, grupos de
irlandeses interessados em chifres de rinoceronte.
A maioria dos antiquários contactados pela SÁBADO não quis
falar sobre essas visitas. O único que aceitou fazê-lo pediu o anonimato
por
receio de represálias. "Chegavam em grupos de cinco ou
seis. Estacionavam os carros, dividiam-se e percorriam as lojas todas",
conta.
"Começavam por perguntar se tínhamos coisas em marfim, tartaruga e no
fim de rinoceronte – para não mostrar demasiado interesse. Eram
insistentes e deixavam cartões, com o telefone", recorda. "Diziam que
pagavam bem, julgo que uns 12mil euros o quilo", diz.
Apreensão no aeroporto
Graças às informações
recolhidas, a 3 de Setembro desse ano, os inspectores da PJ detiveram,
no aeroporto de Lisboa, dois australianos, pai e filho, que se
preparavam para embarcar num voo para Dublin com oito chifres de
rinoceronte na mala. "Trata-se de intermediários, com lojas de
antiguidades na China", recorda Fernando Ramos. "Tinham com eles vários
certificados internacionais que não tinham relação com os chifres",
adianta o inspector-chefe Óscar Pinto, coordenador da brigada de obras
de arte da PJ de Lisboa.
Estes oito chifres foram levados para Coimbra – onde ainda se
encontram, guardados no cofre da PJ. "Fomos chamados para os
identificar. Infelizmente não eram os nossos", lamenta Pedro
Casaleiro. Ao que a SÁBADO apurou, o processo, que decorre no
Departamento Central de Investigação e Acção Penal, aguarda o
cumprimento de cartas rogatórias para ser deduzida acusação. Além dos
australianos, em Março de 2013 foi extraditado para Portugal um irlandês
detido na Alemanha e constituídos arguidos vários negociantes de arte.
No entanto, este não foi o único caso registado em Portugal. A 15
de Maio de 2012, dois homens dirigiram-se ao Mosteiro de Singeverga, em
Roriz, Santo Tirso, para visitar o Museu de Etnografia e Zoologia
de Angola. "Ligaram para marcar uma visita de 20 e tal estudantes
universitários de Lisboa", recorda à SÁBADO o padre Agostinho
Machado que, na época, era o prior-administrador do mosteiro. "No
entanto, só apareceram dois", diz.
A responsabilidade pela visita foi entregue ao padre Adriano. Os
três percorreram o corredor que dá para o museu mas, antes que o clérigo
pudesse abrir a porta, um dos jovens agarrou-o pelo pescoço. "O que
estava livre entrou, foi directo ao sítio onde estava o chifre,
tirou-o da parede e fugiram", lembra Agostinho Machado. O clérigo,
já idoso, ficou no chão. Quando recuperou e pediu ajuda era tarde
demais. Os dois assaltantes – ambos negros – tinham desaparecido.
Perdidos para sempre
O inquérito foi arquivado. "Vimos tudo", recorda à SÁBADO fonte
judicial. A ausência de testemunhas e a inexistência de câmaras de
vigilância no edifício e nas redondezas dificultaram o trabalho dos
investigadores. O objecto roubado estava avaliado em cerca de 20 mil
euros. Nunca mais foi recuperado.
Nessa época, há dois anos, os furtos de chifres de rinoceronte
na Europa estavam no auge. "Após o assalto de Coimbra, a maioria
dos museus que tinham estes objectos retiraram-nos de exposição",
recorda à SÁBADO o inspector-chefe Óscar Pinto. Só quando se
sentiram seguros é que voltaram a expô-los. Foi o caso do Museu de Caça,
da Fundação da Casa de Bragança, em Vila Viçosa.
O museu fica no castelo, ao qual apenas se acede por uma ponte
levadiça, seguida de uma praça e de um túnel por onde não passam
carros à noite. As portas de madeira maciça, o alarme e o sistema de
videovigilância pareciam uma garantia de segurança total. Nada
mais enganador. Na madrugada de 7 de Janeiro de 2013, dois homens
com luvas, chapéus e uma marreta arrombaram a porta principal do
edifício, deitaram abaixo uma porta intermédia e, por último, abriram
a que dá acesso à sala do primeiro andar onde estão expostos
diversos exemplares de caça. Numa das paredes estavam 12 chifres. Os
homens retiraram dois pares e arrancaram um exemplar de outro
par. Depois fugiram. Tudo enquanto o alarme alertava a Guarda
Nacional Republicana local.
"Não estiveram lá mais do que alguns minutos", recorda
o inspector-chefe Óscar Pinto. "Foi um trabalho profissional.
Fizemos tudo para os descobrir. Infelizmente, não conseguimos",
lamenta. Ao que a SÁBADO apurou, a Judiciária tem em curso mais duas
investigações.
Uma pelo roubo de 13 chifres de uma moradia,
emMafra, e outra pelo uso de notas falsas para comprar exemplares de
um particular. As autoridades terão ainda conhecimento de mais duas
situações em que privados foram atraídos a locais públicos para
vender os objectos e acabarampor ser assaltados. No entanto, os
casos não estarão a ser investigados por não ter sido apresentada
queixa, já que os chifres em causa não estariam legalizados.
Esta tem sido uma das preocupações das autoridades: alertar a
população para o valor destes objectos e para os perigos de vendas
a desconhecidos. "Depois de várias visitas, estes grupos acabaram
por encontrar intermediários de confiança que os levaram a todo o País",
explica o inspector-chefe Fernando Ramos. "Têm contactos entre os
antiquários e quando aparece alguém interessado em vender marcam um
encontro. Em alguns casos chegaram a colocar anúncios nos jornais a
dizer que compravam chifres. Depois, ou pagam um valor baixo porque as
pessoas não têm noção do valordas peças ou acabam por assaltá-las",
continua. Algo que faz de Portugal um país muito atractivo para estes grupos. "Devido ao passado colonial,
podemos ser o país da Europa com mais chifres de rinoceronte em
casas particulares", frisa Óscar Pinto.
* Em Portugal pode roubar-se tudo, até cornos.
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