03/10/2014

HELENA MATOS

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Na morte de Alpoim Calvão: 
Como é que os portugueses
 (não) souberam da Mar Verde?


Uma operação que dava um filme. Uma incursão que acabou a ser discutida nas Nações Unidas. Um resgate de prisioneiros realizado com êxito. A história da Mar Verde confunde-se com a de Alpoim Calvão.

Novembro de 1970. Sá Carneiro começa a publicar no “Diário Popular” uma coluna designada “Sétima página” onde chama a atenção para a próxima revisão da Constituição. Na avenida de Ceuta, em Lisboa, abre o primeiro hipermercado português. Gabriel Cardoso era eleito o Rei da Rádio. O Governo de Marcelo Caetano e o Episcopado da Metrópole enfrentam-se por causa da frequência da disciplina de Religião e Moral. O Sporting goleara o Boavista (8-0) e o Farense derrotou o Benfica (1-0). Claro que em matéria de notícias nada concorria com a descoberta do Esquartejador, um afinador de máquinas de costura, de aspecto sorridente e bonacheirão que, segundo os jornais, a mulher deixara “porque tinha defeito”, e a quem é imputada a autoria de vários homicídios unidos por denominador comum: cadáveres de homens cujo rosto fora mutilado. 

Politicamente havia a sobressair as bombas que a 20 de Novembro explodem frente ao edifício conhecido como Escola da PIDE em Sete-Rios, na Av. Duque de Loulé, junto ao Centro Cultural da Embaixada dos EUA e no Cais da Fundição, em Santa Apolónia onde estava atracado o paquete «Niassa». A ARA, organização terrorista criada pelo PCP, que entretanto reivindicara o atentado contra o navio «Cunene», é apresentada como a responsável por mais estes atentados mas não é ainda associada ao PCP pelas autoridades. Na conferência de imprensa que dá sobre estes atentados, Silva Pais, director da PIDE, declara que se está perante “actividades maoístas”.

Mas algo mais se passava: na noite de 21 para 22 de Novembro, Alpoim Calvão, à frente de uma companhia de comandos africanos e de um destacamento de fuzileiros também na sua maioria africanos e de alguns membros da oposição a Sekou Touré, presidente da Guiné Conackry, desembarca em Conakri. Esta operação de nome “Mar Verde” tinha como objectivos: provocar um golpe de estado na Guiné Conakry; destruir as instalações do PAIGC em Conakri; capturar Amílcar Cabral e levá-lo para Bissau e libertar os 26 militares portugueses que estavam detidos numa prisão de Conakry. Alguns como o sargento Lobato há mais de sete anos.

As fugas de informação e a deficiente recolha de dados feita pela PIDE na preparação desta operação têm sido as explicações para que nem Amílcar Cabral nem outros altos quadros do PAIGC estivessem em Conakri e que os aviões MIG que Portugal tinha como objectivo crucial destruir também não estivessem no aeroporto. Vários serviços secretos estrangeiros deviam estar ao corrente da preparação desta operação pois foi à URSS que Portugal comprou, através da firma da família Zoio, as armas que usou nesta operação.
Alpoim Galvão que tinha até ao amanhecer para poder executar a operação retira sem conseguir que Sekou Touré fosse derrubado.

Abandonados à sua sorte ficaram os opositores de Sekou Touré – aqueles que tinham contado com o apoio português e aqueles que nunca tinham mantido qualquer contacto com Portugal ou sequer visto um português. Foram indistintamente chacinados nos dias seguintes. O próprio bispo de Conakry, Raymoond Tscidimbo, acabou preso, torturado e condenado a trabalhos forçados sob a acusação de golpismo. Enforcado numa árvore de Bissau foi também Januário Lopes, um tenente guineense dos comandos portugueses na Guiné que se entregou às forças de Conakry. Januário Lopes que tinha um irmão no PAIGC partiu contrariado para esta operação e uma vez em Conakry decide entregar-se às forças de Sekou Touré. Portugal desvincula-se da presença de Januário Lopes e dos homens que o acompanhavam em Conakry. Sekou Touré não os reconhece como desertores do exército português e potenciais apoiantes do PAIGC. São todos executados.

No que respeita à libertação dos presos a operação foi um completo sucesso e um sucesso que raramente forças armadas doutros países conseguiram em situações similares: os 26 militares portugueses que estavam detidos numa prisão de Conakry foram resgatados sãos e salvos. À excepção do grupo de Januário Lopes o exército português conta apenas uma baixa

A 23 de Novembro começam a sair em Portugal notícias sobre a invasão da Guiné Conakry “por mercenários”. São desmentidas pelo governo português e por Spínola quaisquer interferências de Portugal nesses acontecimentos. Nos dias seguintes Spínola desmente de novo a participação portuguesa na invasão de Conackry.

A 29 de Novembro pequenas notícias dão conta que “conseguiram fugir da República da Guiné portugueses ali detidos”. E a 30 de Novembro no meio do grande destaque informativo sobre a aprovação do divórcio em Itália – 319 deputados votaram a favor, 286 contra – fica a saber-se que já estão em Lisboa os portugueses que oficialmente tinham fugidos das prisões de Conackry.

Entre eles há um nome que se destaca: António Lobato. Fora preso em 1963. Tinha então 25 anos. Pesava 73 quilos. Volta com 33 anos e 48 quilos. Sempre declarou não ter sido maltratado pelo PAIGC e sempre recusou assinar os papéis que o PAIGC lhe punha à frente com condenações ao exército português, assinatura essa que lhe garantiria imediatamente a sua libertação e colocação num país de leste.

Outros como Manuel Marques de Oliveira, Rafael Jorge Ferreira, Manuel Augusto Silva, António Rosa e José Vieira Lauro tinham sido dados como mortos. Os pais estavam de luto e nos jornais das suas terras saíra a notícia das respectivas mortes.

Todos estes homens se comprometeram por escrito a não revelar as circunstâncias da sua libertação.


IN "OBSERVADOR"
30/09/14


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