HOJE NO
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Kobane.
As mulheres no combate
ao Estado islâmico
Dilar Gencxemis, que deu a vida para matar dezenas de militantes do EI, e Mayssa Abdo, que está a liderar as YPG na fronteira sírio-turca, são duas das cerca de 10 mil mulheres que lutam contra o radicalismo islâmico na linha da frente
A
cidade curda de Kobane, na fronteira da Síria com a Turquia, está
largada ao esquecimento. Até agora mera suspeita, depois de semanas de
confrontos entre os cerca de 9 mil militantes do Estado Islâmico (EI) e 2
mil curdos das YPG (Unidades de Protecção do Povo) iniciados a 16 de
Setembro, isso ficou claro há quatro dias, quando um alto cargo da
administração Obama, Tony Blinkin, declarou em Londres: "Kobane não é
uma prioridade, o Iraque é que é."
Dilar Gencxemis |
Kobane está imersa em batalhas campais há um mês, a escassos 92
metros da Turquia, numa fronteira apenas dividida por uma linha de
caminhos-de-ferro. A cidade está hoje totalmente cercada pelos
militantes sunitas extremistas que, em Junho, declararam a instalação de
um califado na Síria e no Iraque e que entraram no enclave com
artilharia pesada e tanques roubados às forças iraquianas. No plano de
conquistas territoriais do EI, a cidade tem uma importância extrema: a
sua tomada, refere o "Washington Post", "dar-lhe-ia controlo de uma
faixa de terreno importante na fronteira sírio-turca que permite
expandir as suas rotas de abastecimento".
Kobane parece ser a versão actual da Varsóvia de 1944: nesse ano os
nacionalistas polacos esperaram em vão pelo Exército Vermelho para os
proteger dos nazis e os pedidos de ajuda aérea foram ignorados por uns
Estados Unidos que tinham acabado de confirmar o seu apoio ao ditador
soviético, Estaline, como aliado da Realpolitik na Segunda
Guerra Mundial. Setenta anos depois, os EUA dizem que Kobane - para onde
milhares de cristãos e árabes fugiram à tomada de partes da Síria pelo
EI nos últimos meses - não é suficientemente importante para integrar a
lista de alvos dos bombardeamentos aéreos, e a Turquia, que se opõe
tanto ao EI como aos curdos, continua a prometer enviar apoio que tarda
em chegar.
"Não nos enviem comida, não precisamos de comida", dizia um homem
prostrado aos pés de um membro da Fundação de Caridade Brazani, uma ONG
com base no Curdistão do Iraque que entrou em Kobane há alguns dias.
"Comeremos lama se for preciso. Enviem-nos armas e peshmergas
[combatentes curdos do Iraque]", pediu, beijando os pés de Musa Ahmed,
vice-director da fundação. Ao seu lado, um outro curdo assistia à cena
com lágrimas a escorrer-lhe pelas faces.
Narin Afrin |
Entregues a si próprios, os habitantes da cidade estão a tentar
resistir aos avanços do EI como podem, recorrendo às AK47 e outras armas
menores, quando postas ao lado da artilharia pesada dos militantes
sunitas. São as YPG que estão a fazer a maior parte do trabalho e,
dentro delas, as mulheres são rainhas.
Enquanto os Estados Unidos se preparam para autorizar soldados do
sexo feminino a combater no terreno a partir de 2016, algo inédito na
história do país, nas comunidades curdas as mulheres sempre lutaram ao
lado dos homens. E, dada a situação em Kobane, são elas quem angaria
grande parte das atenções mediáticas nos combates ao EI.
Nos últimos dias, os jornais internacionais repetiram a história de
Dilar Gencxemis, nome de guerra Arin Mirkan, mãe de dois filhos e
comandante das YPG que se fez explodir em pleno combate com militantes
do EI, firmando a morte de dezenas de inimigos. Neste momento, um terço
dos membros dessas unidades, ligadas ao Partido dos Trabalhadores do
Curdistão (PKK), que a Turquia e o Ocidente classificam como grupo
terrorista, são mulheres. Mayssa Abdo, de 40 anos, nome de guerra Narin
Afrin, está no comando da milícia curda síria, braço armado do Partido
Democrático Curdo (PYD), correspondente ao turco PKK na Síria. Avesta,
combatente curda de 24 anos a quem a "Foreign Policy" dedicou várias
páginas há um mês, comanda 13 soldados, oito dos quais mulheres.
Numa nova edição da "Dabiq", a revista do EI, publicada no domingo,
um artigo justifica a prática de vender mulheres e raparigas, na sua
maioria Yazidis (comunidade étnico-religiosa curda), e de as violar
diariamente para forçar a sua conversão ao islão. Mas é delas que os
militantes fogem em plena batalha.
Ao contrário dos parceiros de guerrilha masculinos, as mulheres das
YPG são temidas pelos membros do EI, que acreditam que vão directos para
o Inferno se morrerem às mãos de uma mulher. "Não é um mito, é real.
Conheci militantes do EI e sei que eles acreditam que não vão para o
Paraíso se forem mortos por uma mulher. É por isso que fogem quando
avistam uma mulher, vi isso a acontecer na frente de Celega", explicou
uma combatente curda ao "International Business Times". "Nós
monitorizamos as chamadas via rádio e quando eles ouvem a voz de uma
mulher ficam histéricos."
Há quem diga que o destaque que as mulheres têm tido nestas lutas é
uma manobra de propaganda dos líderes curdos, que, aproveitando-se das
atitudes opressivas e primitivas do EI, que se revelam também na forma
como tratam e olham o sexo feminino, estarão a tentar limpar a sua
imagem. No passado, o PKK usou mulheres-bombistas em alguns ataques na
Turquia, numa guerra de 30 anos que foi suspensa há dois com a abertura
de um diálogo de paz entre o governo e os curdos. Isso sempre alimentou o
ódio da generalidade dos turcos em relação à minoria que pretende
instalar o seu próprio estado do Curdistão.
Agora que as cerca de 10 mil curdas das fileiras de combatentes na
Síria estão a ganhar destaque e importância, dentro e fora de Kobane, a
forma como os curdos são vistos pela população turca também está a
mudar: a repetição até à exaustão da hashtag #ArinMirkan no Twitter e os
elogios na internet às YPG e aos curdos de Kobane por utilizadores
turcos são provas disso. "Não podemos separar Kobane da Turquia", dizia
há uns dias ao "DailySabah" Kurd Mehmet, turco de 26 anos. "A Arin
sacrificou a sua vida por todos. Os atentados suicidas vão espalhar-se
pela Turquia se [o EI] tomar Kobane, porque os que estão no lado de lá
da fronteira são nossos irmãos."
Apesar de Kobane não ser uma prioridade, os EUA lançaram anteontem
alguns ataques aéreos aos arredores da cidade, dando algum fôlego aos
combatentes no terreno. Pelo contrário, a Turquia continua alegadamente a
impedir a entrada no país de curdos em fuga, detendo curdos sírios na
fronteira, e há rumores de que está a tentar aliar o planeado envio de
tropas para a Síria e o Iraque (ainda por aplicar) à vontade de derrubar
tanto o regime de Bashar al-Assad como os cantões que o PYD tem
estabelecido na fronteira.
Cronologia
2004
Abu Musab al-Zarqawi estabelece a Al-Qaeda no Iraque (AQI)
2006
Sob a liderança de al-Zarqawi AQI inicia guerra sectária
contra comunidade xiita, maioritária no país. Em Junho, o líder é morto
num ataque aéreo dos EUA; em Outubro, o novo líder do AQI, Abu Ayyub
al-Masri, anuncia a criação do Estado Islâmico do Iraque (ISI) e escolhe
Abu Omar al-Baghdadi como líder
2010
Abu Bakr al-Baghdadi assume liderança do ISI após Abu Omar
al-Baghdadi e Al-Masri serem mortos numa operação conjunta dos EUA com
as forças iraquianas
2013
OISI anuncia a absorção da Frente al-Nusra, grupo de
militância da Al-Qaeda que combate o regime sírio; Al-Baghdadi declara
que grupo passa a chamar-se Estado Islâmico do Iraque e do Levante
(ISIS). Dias depois,
o líder da Al-Nusra, Abu Mohammed al-Jawlani, rejeita anúncio de Baghdadi
Fevereiro 2014
Al-Qaeda renuncia todos os laços com o ISIS após meses de lutas sangrentas entre o grupo e a Al-Nusra
Junho 2014
ISIS toma o aeroporto, estações de televisão e
gabinete do governador de Mossul, segunda maior cidade do Iraque, e
liberta mil prisioneiros do país. Dias depois assume controlo de Tikrit,
de Al-Qaim (na fronteira com a Síria) e de outras três cidades
iraquianas. OCurdistão fecha as fronteiras para a região quando o número
de refugiados aumenta. A 29 de Junho, o ISIS anuncia a criação do
califado (Estado Islâmico) na região e Baghdadi declara-se líder dos
cerca de 1,5 mil milhões de muçulmanos de todo o mundo
* Heroínas trituradas pelos donos da indústria de armamento.
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