A insustentável leveza
do professor Marcelo
Para Marcelo nunca há políticas, há factos políticos. Nunca há
objectivos, há apenas fintas e volteios. Talvez seja por isso que nunca
marcou um golo – ele nunca remata à baliza, só brinca na areia.
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Em Portugal se algum político se atrever a comentar os comentadores
acaba, por regra, trucidado. Pelos próprios comentadores e pela tribo
das ideias instantâneas. Por isso achei graça a esta passagem do
discurso que o Presidente Obama
fez na passada sexta-feira, durante as comemorações do 70º aniversário
do Dia D. Nessa altura o líder norte-americano notou que “pelas 8h30, o
general Omar Bradley esperava que as nossas tropas tivessem conseguido
avançar uma milha terra adentro. ‘Seis horas depois dos desembarques’,
escreveu, ‘só conseguíramos tomar dez jardas de praia’. No nosso tempo
de comentários instantâneos, a invasão teria sido declarada rapidamente e
de forma taxativa, como de resto foi por um oficial, como ‘um
fracasso’”.
Lembrei-me destas palavras ao ouvir, este domingo, mais um comentário
de Marcelo Rebelo de Sousa. Podia ter-me acontecido o mesmo se tivesse
ouvido Marques Mendes ou José Sócrates, mas por questões de sanidade
mental consumo com muita moderação esse tipo de exercícios televisivos.
Fico-me, por regra, pelo professor.
A semana passada
Marcelo parecia estar entusiasmado com a hipótese de abertura de uma
crise política. Na sua opinião, era isso que Sá Carneiro teria feito se
tivesse sido confrontado com o último chumbo do Tribunal Constitucional –
pelo menos teria feito na fase em que ainda não fora primeiro-ministro.
Rui Ramos
já aqui demonstrou o absurdo da ideia, mas o professor voltou ao tema
da crise, agora seguindo por outra via. Neste domingo, depois de ter
percebido que o Governo não tencionava bater com a porta, tratou de
distribuir reprimendas por causa de “erros políticos” atrás de “erros
políticos”, incluindo até “erros de Direito” – e “eerros de Direito” não
é, seguramente, a minha especialidade. Nada disse, porém, sobre a
substância dos problemas. Ou seja, nada disse sobre como se poderá
compensar orçamentalmente o chumbo do constitucional não apenas este
ano, mas também nos próximos. Nada disso como poderemos atravessar,
nestas condições, o período de forte consolidação orçamental que se
prolonga, no mínimo, até 2018. Nem sequer disse que esse problema
existia.
Não houve aqui
grande surpresa. Marcelo nunca se compromete, nunca se atravessa, nunca
diz exactamente onde está e para onde sugere que se vá. Para Marcelo
nunca há políticas – há factos políticos. Nunca há objectivos – há
apenas fintas e volteios. Talvez seja por isso que Marcelo nunca marcou
um golo – na verdade ele nunca remata à baliza, só brinca na areia.
Como espectáculo não deixa de ser divertido, e as audiências
provam-no, mas é muito curto quando pensamos nas responsabilidades
políticas passadas, e ambições futuras, de Marcelo Rebelo de Sousa. Uma
coisa é entreter as audiências, exercício em que o professor é mestre,
outra coisa reduzir tudo, na política, a jogos e intrigas ao mesmo tempo
que se lamenta a falta de ideias. Ainda esta semana, por exemplo,
lançou uma farpa a António Costa por este não ter apresentado uma só
ideia nova no lançamento da sua candidatura à liderança do PS – isto
quando ele próprio parece fugir das ideias como o diabo da cruz.
Tomemos um caso concreto, uma notícia de hoje. Vem no Wall Street Journal e fala daquilo que classifica como uma “guerra cultural” em curso na Europa. Vale a pena citar (tradução minha):
“A divisão é entre uma cultura que privilegia o sector privado e que
acredita que o crescimento sustentado depende das exportações e do
investimento e, por isso, enfatiza políticas destinadas a garantir
mercados abertos e competitivos e leis laborais flexíveis; e uma cultura
baseada no sector público e no poder dos sindicatos que acredita que o
crescimento depende de colocar mais dinheiro no bolso das pessoas e, por
isso, favorece políticas keynesianas assentes num aumento da despesa
pública, no encorajamento do endividamento, na protecção dos empregos e
em salários crescentes”.
É uma boa síntese do debate que tem atravessado a Europa e
atravessado Portugal – uma síntese sem os habituais maniqueísmos em
torno do “estado social” e do “neoliberalismo”. É pois um debate bem
vivo e que o artigo do Wall Street Journal até ilustra com a recente
decisão do nosso Tribunal Constitucional, que é apresenta como o melhor
exemplo de como a “cultura do sector público” está a contra-atacar.
Seria interessante que os nossos comentadores, e o professor em
particular, ajudassem os portugueses a entrarem neste debate com um
pouco mais de informação. É divertido ouvi-lo dizer, como disse ontem,
que o TC irá irá “rir convulsivamente”
do pedido de esclarecimento de Passos Coelho, mas é de novo muito curto
e, sobretudo, até pode ser pouco esclarecedor: afinal tudo indica que o
Constitucional tem continuado a aceitar, e a responder, a pedidos de esclarecimentos sobre as suas sentenças.
Como notei numa crónica de há um ano,
na altura existiam 69 horas semanais de comentário político – dez horas
por dia. E dois terços dos comentadores com presença semanal eram ou
são políticos. Não creio que nada de substancial tenha mudado – Marcelo
Rebelo de Sousa continua a ser rei e senhor neste modelo de comentariato
que ele mesmo inventou e cultivou. Alguns dos imitadores lá vão
conseguindo ser notícia aqui e além, mas é tudo. Tristemente tudo.
Mas eu não devia nem devo estar surpreendido: num país onde há horas e
horas de programas sobre futebol onde quase só se discute o trabalho
dos árbitros, o debate e o comentário político também não podiam ser
demasiado diferentes: é muito mais fácil, mais divertido e muito menos
comprometedor fazer de “treinador de políticos” do que ajudar os
cidadãos a arrumar ideias e a categorizar propostas.
Somos o país que somos, e há poucos a remar contra a maré.
IN "OBSERVADOR"
09/06/14
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