ESTA SEMANA NO
"EXPRESSO"
Fisco gasta 30 milhões em
software por ajuste direto
Valor foi gasto em apenas 17 meses. Seis empresas garantiram dois terços dos investimentos da Autoridade Tributária em software desde o início de 2013.
É um mistério tão antigo quanto o primeiro sorteio da Fatura da Sorte,
que data de 17 de abril: quanto gastou a Autoridade Tributária e
Aduaneira (AT) na plataforma tecnológica que sorteia os carros
de alta cilindrada aos contribuintes que pediram fatura? Seria uma
questão fácil para a AT responder, mas a entidade que o Governo criou
com o objetivo de agilizar a cobrança de impostos e combater a fraude
fiscal, não responde quando inquirida sobre o que faz com a parte do
erário público que lhe é atribuído.
Poderia ser a única questão envolta em mistério - mas não é. Por
explicar ficam ainda as seguintes questões: por que é que a AT recorreu
ao ajuste direto em 505 dos 508 contratos que celebrou com fornecedores
(de todos os tipos de bens e serviços)
desde fevereiro de 2012?; por que é que 60 dos 267 contratos com
empresas de software em 2013 e 2014 são justificados com razões de
"segurança" e "interesses essenciais do Estado"?
No Portal Base, há alguns números que ajudam a contornar a escassez de
respostas do Ministério das Finanças: entre janeiro de 2013 e 30 de
maio, a AT gastou 29.730.747,26 euros em software, serviços e derivados.
No total, são 267 contratos - todos por ajuste direto. Os valores até
poderão ser ligeiramente maiores: nem sempre os contratos são inseridos
no Portal Base no dia em que são celebrados. O que significa que, depois
da data de publicação deste texto, poderão vir a ser publicados
contratos mais antigos.
Quando toda - ou quase toda - a Administração Pública
está dependente da aprovação do Ministério das Finanças para proceder a
ajustes diretos superiores a 150 mil euros, será legal a AT usar o
mesmo mecanismo em mais de 20 vezes (sendo que há, pelo menos, quatro
contratos que superam 1,4 milhões de euros)? A resposta é: sim, é legal.
A prova disso pode ser encontrada num dos contratos celebrados
recentemente pela AT, num valor de 1,490 milhões de euros para a
aquisição de uma 'applicance' de grande poder de computação.
O recurso ao ajuste direto é justificado com um despacho de julho de
2013, em que a atual ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque
atribui à AT autonomia financeira, apenas limitada por um outro
despacho, de 1999, que fixa tetos de investimento ainda nos antigos
'contos'. Porém, essa limitação pode ser levantada pelo ministro da
tutela (neste caso a própria Maria Luís Albuquerque) ou por delegação,
pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (Paulo Núncio).
Em resposta enviada por e-mail, a AT reforça a tese da legalidade dos
ajustes diretos que têm sido levados a cabo: "todos os contratos
sujeitos a visto prévio foram devidamente visados pelo Tribunal de Contas,
o que atesta a conformidade dos seus procedimentos e das respetivas
fundamentações com as disposições legais em vigor em matéria de
contratação pública".
Mas será que o Estado sai beneficiado com o uso sucessivo de ajustes diretos quando se trata da compra de software?
"A ganhar não estará certamente, na medida em que estes procedimentos
[ajustes diretos] não permitem a apresentação de propostas concorrentes
para a prestação dos serviços ou o fornecimento de produtos. Ou seja,
privilegiam a relação com uma só empresa e a contratação com base em
preços artificiais, normalmente acima do preços de mercado.
Provavelmente o Estado português estará a ser lesado com esta situação",
adianta Álvaro Amorim Pinto, presidente da Associação de Empresas de
Open Source Portuguesas (ESOP).
Os seis grandes
A par do recurso ao ajuste direto, há outras tendências que podem ser
apuradas na análise dos números extraídos do Portal Base: seis
marcas/consultoras garantiram cerca de dois terços do valor investido
pela AT em software e derivados desde janeiro de 2013 (19,361 milhões de
euros, num total de 29,730 milhões).
Os nomes são conhecidos por quem frequenta o circuito das tecnologias:
Opensoft, Accenture, IBM, Oracle, ITEN e Novabase. Os valores envolvidos
não têm propriamente correspondência direta com o número de contratos
celebrados: a Opensoft lidera no valor total (mais de quatro milhões) e
número de contratos (37), mas há também casos como o da IBM, que apenas
celebrou dois contratos, mas garantiu 2,5 milhões de euros; ou da ITEN
que celebrou 11 contratos e que chegou aos 3,6 milhões de euros, muito
por força de um contrato de mais de 2,5 milhões de euros relacionado com
licenças de tecnologias Microsoft; ou ainda a Oracle, que celebrou
quatro contratos, mas superou os três milhões de euros (num deles em
consórcio com a Time Stamp).
Num segundo plano, é ainda possível, encontrar empresas
como a Glintt e a CPCIS, que não constam no "top 6", mas conseguiram
firmar negócios que superaram, no total, um milhão de euros entre 2013 e
a atualidade. Álvaro Pinto classifica de "preocupante" a recorrência
do ajuste direto na AT, e não hesita em descrever a prática como "pouco
concorrencial e pouco saudável". "A lei confere a possibilidade de
recurso ao ajuste direto em algumas situações. Mas estas deveriam ser a
exceção e não a regra", garante.
Na ESOP e noutras associações que defendem o software livre ou de código aberto (que geralmente não cobram pelas licenças e disponibilizam os códigos de programação), há muito que as práticas de ajuste direto são seguidas de perto - e alvo de críticas. Em causa está a disputa com as grandes marcas de software
proprietário pelas compras do Estado - uma missão que nem sempre se
revela fácil para as empresas de open-source que, na maioria, são de
pequena dimensão e têm um raio de ação confinado a uma área geográfica
reduzida.
Álvaro Pinto recorda que a ESOP já alertou a AT para a proliferação de contratos por ajuste
direto. "A ESOP tem vindo a defender publicamente a necessidade de
maior transparência nos processos de contratação pública, de forma a
criar um mercado realmente competitivo, em que as diferentes empresas e
soluções são comparadas e avaliadas do ponto de vista económico, em pé
de igualdade", acrescenta.
Quanto valem 30 milhões?
Afinal, 30 milhões de euros é muito ou pouco? O histórico permite ter
uma ideia: a Direção Geral de Informática Tributária e a Aduaneira
(DGITA), que foi, até à reformulação governamental, responsável por
grande parte das funções assumidas pela AT, investiu cerca de 8,6
milhões de euros em 106 contratos durante 2011 (acrescidos de um único
contrato assinado em 2012). O valor confirma que, desde que a AT foi
constituída, o investimento em software não parou de aumentar - e que,
caso se mantenha o ritmo registado nos primeiros cinco meses, 2014
poderá terminar mesmo com mais do dobro do investimento registado em
2011 - ou até de 2013.
Projetos como a fatura eletrónica ou do guia de transporte de bens
poderão estar na linha da frente das justificações para os investimentos
levados a cabo nos últimos tempos, mas também há quem recorde que estas
soluções não só se pagam, como poderão reduzir "a peanuts" os 30
milhões de euros investidos em ano e meio - especialmente quando se
procede à comparação com o montante que o Estado passou a coletar junto
de empresas e contribuintes através do cruzamento de dados.
"O problema dos ajustes diretos não será tanto o dinheiro investido, mas
antes a dependência que o Estado tem de algumas empresas e a
inexistência de um modelo de governação e de arquitetura tecnológica",
refere fonte bem colocada na indústria, que não quis ser identificada.
A alegada dependência do Estado face a um punhado de marcas ganha novos
contornos quando a análise dos 267 ajustes diretos que a AT publicou no
Portal Base permite concluir que 60 dos contratos relacionados com
software e afins recorreram a uma das alíneas do artigo 24º do Código de
Compras Públicas (CCP) que legitima o ajuste direto quando estão em
causa "medidas especiais de segurança".
Fará sentido as tecnologias usadas para a cobrança de impostos terem
estatuto de segredo de Estado?
O Ministério das Finanças não explica e,
no Portal Base, não é possível saber com que fim são usadas as
diferentes tecnologias compradas pela AT. Aos contribuintes mais não
resta do que se contentarem com a transcrição da alínea f) do artigo 24º
do CCP, que dá a conhecer uma das circunstâncias em que o recurso ao
ajuste direto é legítimo.
* Nem tudo o que é legal é justo, se não fosse o Tribunal Constitucional estaríamos muito mais sujeitos aos desmandos do governo.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário