O QUE NÓS
DESCOBRIMOS
A Casa dos Espíritos
A história da única família de banqueiros portuguesa (II)
Quando Ricardo do Espírito Santo Silva morre, em 1955, a Família
dobra uma esquina no tempo. Esgotam-se os anos de afirmação financeira,
cultural e social. E resta ao irmão mais novo, Manuel, consolidar a
herança a par de um regime que se extingue devagar. Para trás ficara a
obra de José Maria, seu pai
que, do nada, erguera um nome e uma casa bancária imune às crises da
monarquia e ao caos da I República. Ficara também a exigente travessia
da Grande Guerra e a difícil fundação do banco (1920) suportada pelo
irmão mais velho.
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Ficara ainda a projecção financeira atingida pelo irmão do meio, Ricardo Espírito Santo Silva. Em pouco mais de 20 anos, o novíssimo banqueiro ligara-se ao Banco Comercial de Lisboa (1937) e espalhara uma rede de balcões por todo o País. Antes da hora, preparava uma estrutura capaz de absorver os benefícios da economia da II Guerra Mundial, instalando o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa no topo da banca privada portuguesa.
A par das
conquistas financeiras, Ricardo dera dimensão cultural à segunda
geração da Família Espírito Santo. Deixara ao País uma fundação com a
mais completa coleção de peças de arte portuguesa, perdidas durante o
tumultuoso século XIX e resgatadas pelo banqueiro nos cantos mais
escondidos da Europa e dos Estados Unidos. Organizara em Paris uma
grande exposição de ourivesaria portuguesa, que seria inaugurada pelo
Presidente René Coty pouco depois da sua morte. E é também com Ricardo
Espírito Santo que a Família se estreia numa teia de valiosos contactos
internacionais que dão escala ao nome e ao negócio.
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O terceiro irmão, Manuel, será um anfitrião de primeira água, fortalecendo a rede dos Espíritos. "Podia ter sido diplomata. Tinha um trato extraordinário", lembra Ferreira Neto [no ano 2000] presidente do BIC. Chega a ser convidado por Marcello Caetano para ocupar a embaixada de Portugal em Washington.
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"O meu pai dava muita importância aos estrangeiros. No mundo dos negócios, são contactos que ficam", diz José Manuel E.S. Lembra-se, em pequeno, de ver lá em casa os condes de Paris, Calouste Gulbenkian, o duque de Kent, os condes de Barcelona, o rei de Itália, Richard Nixon, Giscard d'Estaing, os Firestone, Bernardo da Holanda, os irmãos Rockefeller, as famílias reais do Luxemburgo e do Liechtenstein e George Woods, presidente do Banco Mundial.
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Mas a história desta Família parece ser feita apenas por homens. Na sombra, as mulheres construíam um mundo que os fazia existir a tamanha escala. Isabel Pinheiro de Melo, mulher de Manuel, empresta aos Espírito Santo o mundo tradicional que a pacatez dos anos salazaristas devolve a algumas famílias de Lisboa. Filha do conde de Arnoso, um dos Vencidos da Vida, amigo e secretário do rei D. Carlos, "é uma grande figura do matriarcado e da dignidade", nas palavras de Augusto Athaíde [no ano 2000; entrou para o grupo Espírito Santo no Brasil, depois de abril de 1974. Entre outros cargos que ocupou no grupo, foi presidente do Banco Internacional de Crédito, integrado depois por fusão no Banco Espírito Santo].
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Tem onze filhos, criados entre o Paço do Lumiar e a casa de Santa Marta, sobre o mar de Cascais. Passa o Natal e a Páscoa no Peru, perto de Azeitão. E é entre a farta prole, as casas grandes e os interesses profissionais do marido que desdobra os seus cuidados.
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Todas as terças-feiras, nos três meses de Verão, dá um almoço "socioprofissional" no terraço de Santa Marta. Traz por casa os maiores banqueiros do mundo e os reis sem trono da nova ordem europeia. Mas envolve os maiores acontecimentos com um ambiente familiar acolhedor. Quarenta anos mais tarde, receberia das mãos do rei de Espanha uma pequena medalha com o número 12 e com a legenda: "Mãe Isabel, este é um símbolo do seu 12º filho". D. Juanito não esquecia os anos calmos da sua meninice entre o Estoril e Cascais, numa aldeia onde poucas famílias grandes passavam os meses de Verão.
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Dar o exemplo
De certa maneira, os Espírito Santo vivem num país estrangeiro. Poupam-se às crises políticas, académicas ou laborais que atravessam Portugal durante o Estado Novo. E florescem num microclima de caçadas, vela, jogos de ténis e festas sem grande ostentação. Como é dado. Nesta geração, tudo parece garantido.
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"A burguesia aceitava um regime que lhe permitia auferir os seus créditos em sossego, a mentalidade conservadora e mesmo reaccionária dominava ainda a primeira ou segunda geração das dinastias financeiras e industriais", escreve Jaime Nogueira Pinto.
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Os Espíritos cumprem. Trabalham cedo - do balcão à presidência - e não irão fugir à guerra do Ultramar. "Era importante dar o exemplo e ter o sentido da responsabilidade. Não fazer escândalo nem ser ostensivo", define José Manuel E.S.
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Era importante também não se manifestarem politicamente. "Têm um princípio: os negócios não se misturam com a política. Mesmo dentro de casa, cada um é o que quiser ser mas, quando se sentam à hora do negócio, não há se não contas certas", explica Augusto Athaíde.
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Manuel E.S. não tem a mesma proximidade de Salazar que seu irmão Ricardo tivera entre 1932 e 1955. Desloca-se a S. Bento apenas uma vez por ano para apresentar pessoalmente o relatório de contas do grupo. Nos últimos anos, nem isso acontecia. Mas é amigo de vários ministros. Luís Supico Pinto e o professor Lumbrales, por exemplo, são da casa. Franco Nogueira também repete visitas. Terá um lugar no grupo quando deixar o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
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O imobilismo salazarista e a Primavera nunca cumprida de Marcello Caetano garantem as variáveis fixas da estabilidade. Também a falta de liberdade sindical e de direito à greve facilitam o governo interno dos grandes grupos económicos. E há apoios crescentes nos investimentos em Angola e Moçambique, sobretudo durante a Guerra do Ultramar.
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"O grupo Espírito Santo é mais conservador que os outros e tem uma estratégia familiar muito coesa. Durante a Primeira República alinharam com a ala mais moderada. Com o regime salazarista e, mesmo quando, em 1959, a economia abre com a entrada na EFTA, mantêm a ligação forte com África e uma insensibilidade em relação à Europa", diz Fernando Rosas.
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Mas para os financeiros - que baseiam o seu ofício na confiança - a tradição não é defeito. Enquanto os outros grupos cresceram da indústria para a banca, os Espírito Santo fizeram o movimento inverso, "sempre com participações minoritárias, não estratégicas, segundo o princípio básico de que o banco deve estar ao serviço dos seus clientes" explica Ricardo Salgado.
Estratégia em África
A partir de 1959, Portugal abre-se timidamente ao mundo. O lápis azul não apaga tudo o que se vê na televisão; o turismo areja o ambiente ultra-doméstico das nossas aldeias de roupa branca; a emigração vira-se em massa para a Europa, com retornos mais imediatos; e o investimento estrangeiro, a par da entrada na EFTA, desperta novos olhares sobre o País.
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Manuel prefere uma gestão conservadora da atividade financeira, com o apoio do irmão mais velho, José. Não terá o atrevimento económico de António Champalimaud, nem a modernidade que os Mellos tentam impor à condução do seu grupo. Acompanha a onda de crescimento económico da década de 60 e vai renovando a casa, de dentro para fora.
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Contrata um grupo de tecnocratas que lhe refrescam a gestão. José Roquette assume a direcção comercial nacional; Mário Adegas, a contabilidade; Ferreira Neto, o pessoal; e Mário Mosqueira do Amaral, a direcção internacional. São da sua safra as participações no Libra Bank, com o Chase Manhattan, o Bank of Tokyo, o Itaú e um banco holandês associado ao Rea Brothers, presidido por Walter Solomon, judeu alemão de Hamburgo, grande amigo de Manuel E.S.
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A abertura económica pedia abertura política. Em Angola, António E.S. lança, em 1973, o Banco Inter-Unido, em associação com o City Bank, e insiste com os delegados políticos locais na ideia de uma independência progressiva, que inclua os colonos e os movimentos de libertação. Sabe que é a única forma de manter o tecido empresarial em África, onde tem a maior plantação de café do mundo (CADA); mais de 15 mil hectares de cana-de-açúcar (Cassequel); a Companhia dos Açúcares de Angola; a importante Petrangol; a Sociedade Agrícola do Incomati; e a Companhia dos Algodões em Moçambique, em associação com os Lagos.
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Dentro da Casa dos Espíritos, a mudança começara pouco antes de 1974. Desaparecidos os três filhos do fundador (1973), a condução dos negócios passara para Manuel Ricardo - o primogénito do terceiro filho (Manuel). Pela lógica da varonia, anteriormente aplicada, a chefia do grupo caberia ao primeiro filho do mais velho dos três irmãos (José E.S). Mas este prefere ficar mais ligado à Tranquilidade, sendo Manuel Ricardo eleito por unanimidade. Uma nova geração chegava ao topo do grupo com projetos que não têm tempo para ser novos.
"Fascistas e capitalistas"
A revolução de 1974 apanha os grandes grupos económicos portugueses na cama. Nenhum deles está preparado para o dia seguinte. Como se não quisessem acreditar nos avisos que a agonia marcelista deixava escapar.
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Há um ano que os Estados Unidos não têm um embaixador em Lisboa. A Guiné declara unilateralmente a independência em 1973. Spínola lançara "Portugal e o Futuro" e há vigílias pela Paz na Capela do Rato. Em Março de 1974, é dado o último sinal: um grupo de militares descontentes falha o Golpe das Caldas, anunciando para breve a esquina política. "É um mistério...", reconhece Augusto Athaíde, também desprevenido.
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Manuel Ricardo tenta "navegar sem naufragar" - como diz - entre greves, comissões de trabalhadores, congelamentos financeiros e o controlo de movimento de capitais. Participa no Movimento Dinamizador Empresa-Sociedade (MDES). Lá estão, também, José Manuel de Mello, António Champalimaud, Joaquim Aguiar e Leonardo Ferraz de Carvalho, entre outros. Querem lançar um programa de evolução económica e empresarial baseado nas regras da democracia. Chegam a entregar o documento ao Conselho da Revolução, mas nada atrapalha a cadência do Processo Revolucionário Em Curso. "Fascistas e capitalistas" formam sinónimos nos slogans dos manifestantes que todos os dias gritam nas ruas. Os seus nomes são apontados em listas de malfeitores policopiadas e distribuídas pelo poder que caiu na rua.
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A mesma vanguarda revolucionária assaltaria a sede do MDES, "ali perto da Avenida da República: as mesas e as cadeiras voaram pelas janelas e os papéis foram todos queimados", lembra-se José Manuel de Mello, numa entrevista a Maria João Avillez, em 1994. Parecia não haver saída para os senhores da economia anterior.
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A paralisia do ver para crer toma conta dos maiores empresários portugueses. E, mesmo em Janeiro de 1975, quando Manuel Ricardo prevê a nacionalização do banco, nada faz - ou pode fazer - para prevenir uma saída sustentada. "Sou o comandante do navio. Vou com ele para o fundo", disse aos seus. E foi.
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A verdadeira revolução chegaria à banca à hora do almoço do dia 11 de Março de 75. Como sempre, o BESCL fechou as portas da Rua do Comércio ao meio-dia. Mal sabia que só as abriria uma semana depois para o público e 17 anos mais tarde para a administração dos Espíritos.
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No terceiro andar, trabalhadores do banco, armados, prenderam seis membros da família. José Roquette telefonara minutos antes para a administração do BESCL, de onde lhe respondera um ocupante: "O dr. Manuel Ricardo não atende este telefone, nem nunca mais o vai atender". Roquette parte para a Baixa, fura o cerco dos militares e acaba preso como outros elementos da família Espírito Santo. A revolução virara a mesa e o Decreto-Lei 132 A/75 anunciava a nacionalização da banca e dos seguros em Portugal.
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Ainda assim, o primo da nova geração, Ricardo Salgado, é convidado a continuar no banco. Escapara às capturas de 11 de Março e será bem recebido por Pinto Alho, líder do conselho de gestão. De Março a Abril de 1975, gere o conflito de fidelidade que resulta do facto de trabalhar numa empresa que lhe foi tirada.
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"Era importante estar dentro do banco", diria à SIC, em 1994. Mostrava jogo de cintura da família e tentava a libertação dos cativos através de contactos na Marinha, onde tinha feito o serviço militar. A cada chamada, Pinheiro de Azevedo garante-lhe que tudo se resolve depressa. Mas os dias passam sem resultados e Ricardo Salgado resolve deixar o País e o banco, rumo à Suíça. Aí se reúne com Mário Amaral que também "tinha fugido num navio que o Dinis, empregado lá do banco, lhe arranjou", lembra-se Ferreira Neto.
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Na prisão de Caxias, os presos da Família contam os dias e as noites, que somam quatro meses. Com Manuel Ricardo E.S., José Maria E.S., Carlos E.S Mello, o comandante Ricciardi, Jorge e José Manuel E.S, estavam também José Roquette, o duque de Palmela, José de Mello, Spínola, irmão do general, e Quirino Mealha, presidente do Borges & Irmão. Dias depois, entrava a administração do Sotto Mayor, compondo os metros quadrados mais financeiros do País.
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Manuel Piçarra não esquece aqueles dias, nem as conversas com Manuel Ricardo: "Disse-me que, se dali saísse um dia, iria começar tudo de novo. Que não tinha dinheiro seu. Apenas tinha amigos e vontade de recomeçar. Tinha, e ali me referia, grande sentido de família, que queria unida para o regresso."
Amigos no Mundo
Ironicamente, a revolução terá ajudado a evitar a possível queda dos Espíritos na quarta geração. Segundo Thomas Mann, é nessa altura que a ambição cede ao desperdício e a união familiar dá lugar ao estilhaço dos interesses.
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Mas os quatro meses de prisão dos mais destacados homens da Família, a fuga a salto para Espanha, em Agosto de 1975, e o refúgio numa "finca" perto de Toledo, sem muito dinheiro e fora do País, reúnem a família no essencial: o nome.
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É uma época de escolhas. Entregues a si próprios num mundo desconhecido, é como se estivessem prisioneiros da sua liberdade. Continuar juntos? Por onde começar? Em que lugar assentar? Que apoios privilegiar? Em que sectores apostar? Com quem contar?
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Os homens da Família encontram-se em Londres nesse mesmo Verão Quente de 1975 para desenharem uma estratégia. Reúnem-se na casa emprestada de um amigo romeno, Richard Stern, um poiso de exílio para banqueiros portugueses e princesas do Leste, com as suas famílias.
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Os contactos apontam destinos. Os Espírito Santo estão em Londres porque contam com o apoio precioso, de instalações e telefones, do Rea Brothers, presidido pelo velho amigo, Walter Solomon. O banqueiro, feito Sir pela rainha de Inglaterra, falará dos amigos portugueses a Genscher [Hans-Dietrich Genscher, à época vice-chanceler alemão e ministro dos Negócios Estrangeiros de Helmut Schmidt] e outros notáveis europeus.
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Visitas antigas de Cascais, como Bernardo da Holanda e os Rockefeller, estão presentes em pequenas recomendações que valem milhões.
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A história oficial reduz a 20 mil dólares (3500 contos) a base de reconstrução do grupo. Algumas casas de Lisboa são vendidas e parte do seu recheio cai nas mãos de antiquários estrangeiros que aproveitam a incerteza revolucionária para comprar a baixo preço. "Não há obras de arte que reconstruam grupos. Quanto muito, ajudam as pessoas a sobreviver", dirá Ricardo Salgado, em 1994. "Mas tínhamos activos intangíveis como a confiança e o conhecimento".
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Aquilo a que o "Wall Street Journal" intitula de "nome mágico que atrai a magia". Ou a finança. O suficiente para começar um projeto tecnicamente simples de capital de risco.
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Banqueiros sem banco, os Espírito Santo continuam a ser recebidos como nos melhores anos. Em Setembro de 1975, Manuel Ricardo não deixa de ser convidado para a reunião anual do FMI, em Washington. No jantar oferecido pelo Banco Mundial, o presidente McNamara dá-lhe a direita ao som de uma solidária salva de palmas. É o descontentamento para os representantes do Banco de Portugal e o crédito internacional para o novo Grupo Espírito Santo. Pouco depois, o Banco Mundial aposta no desenvolvimento do grupo na área agrícola no Brasil e no Paraguai.
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A liderança de Manuel Ricardo E.S. é reforçada no estrangeiro. Gere consensos e é determinado. Nesta fase, alguns membros da família passam para segundo plano. Na mesma linha, técnicos qualificados do banco, como José Roquette e Mário Mosqueira do Amaral, entram como accionistas da casa nova.
O regresso
O Brasil parece o destino preferencial. Em pleno desenvolvimento económico e com estabilidade política forçada, atrai fortes correntes de capital, especialmente dos Estados Unidos. Ricardo Salgado voara para lá, logo em Junho de 1975. Falara com o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonson, que lhe abrira as portas nos ramos financeiro e agro-industrial.
António Espírito Santo tem incentivos para projectos no Brasil e no Paraguai. Constrói uma cidade no meio do nada, a 90 quilómetros das cataratas do Iguaçu. De tal maneira fica ligado àquela nova terra que, como pedira, as suas cinzas seriam lá depositadas em 1995.
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A onda de portugueses que vai para o Brasil depois da revolução tem uma atitude parecida com a dos príncipes russos do pós-guerra no exílio de Paris. Forma um grupo queixoso. "Usam um discurso que amplia os domínios que lhes tinham sido tomados. E gozam a infelicidade com galões de exílio político que os distingue dos emigrantes portugueses de sempre".
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Por contraste, a turma Espírito Santo mantém-se "calada na praia do lado". Tinha sido um dos objetivos da vanguarda de Abril. "Mas abusava da discrição. Cultivava uma snobeira de sinal contrário: silenciosa e trabalhadora", lembra-se quem ficava a meio da praia.
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Na verdade, seria exactamente o apoio dos emigrantes portugueses dos anos 20 uma das chaves dos Espírito Santo nas terras de Vera Cruz. David Guimarães, banqueiro, e António Carlos Almeida Braga, accionista controlador da seguradora Atlântico-Boavista, dão o primeiro empurrão financeiro ao grupo no Brasil. Uma palavra deixada cair por Manuel Queirós Pereira na direcção do Manufacturers Hannover e algum apoio pessoal também seriam providenciais para a descolagem dos primeiros negócios.
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As alianças feitas nos anos da véspera da revolução com o Chase e com o City Bank, traduzem-se agora em sociedade e empréstimos bonificados.
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A cultura de trabalho da Família manifesta-se com a exigência dos primeiros tempos. Manuel Ricardo instala-se em Londres sem staff doméstico. Enquanto o seu irmão António vive num apartamento no Rio com mais dez ou doze técnicos que trouxera de Angola para recomeçar o grupo agrícola. "Teria casa à sua disposição, mas quis ficar ali com todos os outros", lembra Ferreira Neto.
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As equipas que quiseram continuar com os Espírito Santo formavam um "activo" importante para o arranque lá fora. "Fiquei encarregado de transmitir aos empregados da Cassequel [de Angola] que a família Espírito Santo não lhes garantia mundos e fundos no Brasil. Mas teriam subsistência se quisessem continuar a trabalhar com eles." Cerca de 100 quadros quiseram.
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Miami, Suíça, Paraguai, Bahamas, Zaire, Luxemburgo e Londres são novos pontos cardeais para o relançamento dos Espírito Santo em mais de 30 empresas. Sempre com uma postura pouco aculturada, "iguais, com as mesmas piadas e o mesmo clima de grupo em cada sítio", diz um colaborador.
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Um clima de grupo que também conhece divisões. A decisão de voltar para Portugal, por exemplo, tarda por falta de consenso. A matriarca, Isabel E.S., ficara em Azeitão com o apoio do filho Bernardo. Tal como a duquesa de Palmela, sua irmã, ficara no Calhariz. Também Mary Cohen ficara no País com as quatro filhas. Portam-se como âncoras que são. Defendem o território e acolhem os emigrados nos Natais que se seguem a 1978.
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E nem a AD, entre 1979 e 1983, convence os Espírito Santo ao regresso a Portugal. Será Mário Soares, em 1984, com o socialismo meio fechado na gaveta, a incitar Manuel Ricardo E.S. a voltar para o País em força. O banqueiro pondera o convite do primeiro-ministro e logo lhe refere as indemnizações devidas.
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Assiste-se à austeridade do Bloco Central, mas adivinha-se a retoma da economia na véspera da entrada na Europa. Os indicadores favorecem os optimistas e a Família não terá dificuldades em convencer os parceiros do Crédit Agricole a abrirem o Banco Internacional de Crédito, em Lisboa, no final de 1986. Mas só depois da revisão constitucional de 1989 será possível tentar recuperar o controlo das empresas e do banco.
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O grupo cria músculo financeiro. Parte da holding financeira está cotada nas Bolsas de Luxemburgo e de Londres. A conquista de Nova Iorque dá-se em 1991. Um sucesso que garante manchetes nos jornais americanos. A próxima escala será Lisboa. A família quer de volta as duas jóias: a Tranquilidade e o BESCL.
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A custo ganha a seguradora. O banco será mais fácil. Se na Tranquilidade foi decisivo o apoio do Crédit Agricole, no BESCL o grupo terá do seu lado os potenciais concorrentes, que se inibem da corrida respeitando o direito histórico.
Manuel Ricardo conduz o banco a bom porto, mas não terá o gosto de ver o BESCL de novo nas mãos dos seus. Morre, inesperadamente, em Março de 1991.
Uma questão de confiança
Em Setembro desse ano, os Espírito Santo podem, finalmente, subir ao 15º andar no número 195 da Avenida da Liberdade. Eliminam os tabiques que então dividiam as salas de cada administrador e recuperam o clássico open space em que sempre conduziram os seus interesses. Na imensa sala - claríssima - com fronteiras de vidro sobre a Avenida alinham-se agora as oito secretárias dos administradores, todas viradas para o centro, como se de uma távola redonda se tratasse. "A união familiar dá trabalho. As pessoas têm de falar", explica José Manuel Espírito Santo.
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A rara colecção de quadros que animava os gabinetes dos homens do Estado passou para os corredores e salas comuns daquela espécie de olimpo financeiro. Sobrou fleuma para não caçar os trabalhadores, que a 11 de março de 1975 pegaram em armas para prender a administração. "Recomeçar sem passado" foi o verbo. Ou nem tanto.
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Há várias lições que se tiram da ruptura de 1975 e da estreia internacional. Não voltam a apostar tudo em Portugal e elegem um regime de joint venture para os novos projectos. Repetem o exemplo do primeiro avô, José Maria Espírito Santo. "Saem bem dos negócios, no tempo exacto para o investimento financeiro. As passagens pela Telecel e pela Petrogal são os melhores exemplos dessa política. E mantêm uma rede de influência com profissionais da sua confiança em sectores estratégicos", diz um observador.
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O tempo e o número dos parentes tem efeitos corrosivos implacáveis para qualquer clã. "Estão todos no mail da Fundação e são convidados para tudo o que aqui acontece", diz Maria João Bustorff, [no ano 2000] directora da Fundação Ricardo Espírito Santo, "mas só aparecem10 por cento".
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Os Espírito Santo mantêm-se unidos e dispersos. O ramo do primeiro irmão - José - isolou-se. Em 1975, apesar de ser o único com alguma folga financeira fora do País, aposta timidamente na reconstrução do grupo.
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Ricardo E.S - o segundo irmão - teve apenas quatro filhas o que, pela matriz varonil do grupo, atrasou por uma geração o acesso dos descendentes a cargos de chefia. Um dos genros, o comandante Ricciardi, assume a presidência do grupo em Março de 1991, ao mesmo tempo que Ricardo Salgado (neto) lidera a holding financeira.
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Haveria mais escolha entre os onze filhos do terceiro irmão (Manuel) no unidíssimo ramo Arnoso Espírito Santo. A sucessão terá sido mais pacífica do ponto de vista técnico do que familiar. Mas os irmãos de Manuel Ricardo estavam ligados a projetos especializados. Apenas o primo Ricardo Salgado se mantivera sempre na área financeira, acompanhando a estratégia de conjunto com o presidente anterior. De qualquer modo, a seis meses de recuperação do BESCL não havia lugar para divisões.
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Hoje [ano 2000], há apenas duas dezenas de Espíritos que se entregam à "firma". Três administradores, um director e dois juniores no BES. É regra da casa começarem pelo balcão. Como regra é, serem apurados apenas os que dão garantias de não fazer estragos. Ao banco e ao nome dentro do banco. "As decisões são tomadas de uma maneira muito objetiva", garante Ricardo Salgado.
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Mas esse não é o trunfo da durée da única dinastia financeira que chegou aos nossos dias: "Houve um Norte. Assente na confiança no seu nome e na 'fairness' ou neutralidade, se preferir", define Augusto Athaíde [em 2000].
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Parece que a história chegou ao fim. A Família resgatou o seu banco e, depois da fusão com o BPI, devolveu-lhe o primeiro lugar no topo do ranking privado português. Esgotado o sonho da reconquista, sobra a rotina da manutenção. Ricardo Salgado contraria: "A história nunca chega ao fim, é um processo contínuo, que espero ser sustentado."
Publicado originalmente na edição de 3 de março de 2000 na revista do jornal "O Independente"
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Ficara ainda a projecção financeira atingida pelo irmão do meio, Ricardo Espírito Santo Silva. Em pouco mais de 20 anos, o novíssimo banqueiro ligara-se ao Banco Comercial de Lisboa (1937) e espalhara uma rede de balcões por todo o País. Antes da hora, preparava uma estrutura capaz de absorver os benefícios da economia da II Guerra Mundial, instalando o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa no topo da banca privada portuguesa.
Manuel Ricardo Espírito Santo (à janela do jipe, fotografado com os dez irmãos) chegou à presidência do BES aos 40 anos |
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O terceiro irmão, Manuel, será um anfitrião de primeira água, fortalecendo a rede dos Espíritos. "Podia ter sido diplomata. Tinha um trato extraordinário", lembra Ferreira Neto [no ano 2000] presidente do BIC. Chega a ser convidado por Marcello Caetano para ocupar a embaixada de Portugal em Washington.
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"O meu pai dava muita importância aos estrangeiros. No mundo dos negócios, são contactos que ficam", diz José Manuel E.S. Lembra-se, em pequeno, de ver lá em casa os condes de Paris, Calouste Gulbenkian, o duque de Kent, os condes de Barcelona, o rei de Itália, Richard Nixon, Giscard d'Estaing, os Firestone, Bernardo da Holanda, os irmãos Rockefeller, as famílias reais do Luxemburgo e do Liechtenstein e George Woods, presidente do Banco Mundial.
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Mas a história desta Família parece ser feita apenas por homens. Na sombra, as mulheres construíam um mundo que os fazia existir a tamanha escala. Isabel Pinheiro de Melo, mulher de Manuel, empresta aos Espírito Santo o mundo tradicional que a pacatez dos anos salazaristas devolve a algumas famílias de Lisboa. Filha do conde de Arnoso, um dos Vencidos da Vida, amigo e secretário do rei D. Carlos, "é uma grande figura do matriarcado e da dignidade", nas palavras de Augusto Athaíde [no ano 2000; entrou para o grupo Espírito Santo no Brasil, depois de abril de 1974. Entre outros cargos que ocupou no grupo, foi presidente do Banco Internacional de Crédito, integrado depois por fusão no Banco Espírito Santo].
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Tem onze filhos, criados entre o Paço do Lumiar e a casa de Santa Marta, sobre o mar de Cascais. Passa o Natal e a Páscoa no Peru, perto de Azeitão. E é entre a farta prole, as casas grandes e os interesses profissionais do marido que desdobra os seus cuidados.
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Todas as terças-feiras, nos três meses de Verão, dá um almoço "socioprofissional" no terraço de Santa Marta. Traz por casa os maiores banqueiros do mundo e os reis sem trono da nova ordem europeia. Mas envolve os maiores acontecimentos com um ambiente familiar acolhedor. Quarenta anos mais tarde, receberia das mãos do rei de Espanha uma pequena medalha com o número 12 e com a legenda: "Mãe Isabel, este é um símbolo do seu 12º filho". D. Juanito não esquecia os anos calmos da sua meninice entre o Estoril e Cascais, numa aldeia onde poucas famílias grandes passavam os meses de Verão.
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Dar o exemplo
De certa maneira, os Espírito Santo vivem num país estrangeiro. Poupam-se às crises políticas, académicas ou laborais que atravessam Portugal durante o Estado Novo. E florescem num microclima de caçadas, vela, jogos de ténis e festas sem grande ostentação. Como é dado. Nesta geração, tudo parece garantido.
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"A burguesia aceitava um regime que lhe permitia auferir os seus créditos em sossego, a mentalidade conservadora e mesmo reaccionária dominava ainda a primeira ou segunda geração das dinastias financeiras e industriais", escreve Jaime Nogueira Pinto.
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Os Espíritos cumprem. Trabalham cedo - do balcão à presidência - e não irão fugir à guerra do Ultramar. "Era importante dar o exemplo e ter o sentido da responsabilidade. Não fazer escândalo nem ser ostensivo", define José Manuel E.S.
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Era importante também não se manifestarem politicamente. "Têm um princípio: os negócios não se misturam com a política. Mesmo dentro de casa, cada um é o que quiser ser mas, quando se sentam à hora do negócio, não há se não contas certas", explica Augusto Athaíde.
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Manuel E.S. não tem a mesma proximidade de Salazar que seu irmão Ricardo tivera entre 1932 e 1955. Desloca-se a S. Bento apenas uma vez por ano para apresentar pessoalmente o relatório de contas do grupo. Nos últimos anos, nem isso acontecia. Mas é amigo de vários ministros. Luís Supico Pinto e o professor Lumbrales, por exemplo, são da casa. Franco Nogueira também repete visitas. Terá um lugar no grupo quando deixar o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
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O imobilismo salazarista e a Primavera nunca cumprida de Marcello Caetano garantem as variáveis fixas da estabilidade. Também a falta de liberdade sindical e de direito à greve facilitam o governo interno dos grandes grupos económicos. E há apoios crescentes nos investimentos em Angola e Moçambique, sobretudo durante a Guerra do Ultramar.
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"O grupo Espírito Santo é mais conservador que os outros e tem uma estratégia familiar muito coesa. Durante a Primeira República alinharam com a ala mais moderada. Com o regime salazarista e, mesmo quando, em 1959, a economia abre com a entrada na EFTA, mantêm a ligação forte com África e uma insensibilidade em relação à Europa", diz Fernando Rosas.
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Mas para os financeiros - que baseiam o seu ofício na confiança - a tradição não é defeito. Enquanto os outros grupos cresceram da indústria para a banca, os Espírito Santo fizeram o movimento inverso, "sempre com participações minoritárias, não estratégicas, segundo o princípio básico de que o banco deve estar ao serviço dos seus clientes" explica Ricardo Salgado.
Estratégia em África
A partir de 1959, Portugal abre-se timidamente ao mundo. O lápis azul não apaga tudo o que se vê na televisão; o turismo areja o ambiente ultra-doméstico das nossas aldeias de roupa branca; a emigração vira-se em massa para a Europa, com retornos mais imediatos; e o investimento estrangeiro, a par da entrada na EFTA, desperta novos olhares sobre o País.
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Manuel prefere uma gestão conservadora da atividade financeira, com o apoio do irmão mais velho, José. Não terá o atrevimento económico de António Champalimaud, nem a modernidade que os Mellos tentam impor à condução do seu grupo. Acompanha a onda de crescimento económico da década de 60 e vai renovando a casa, de dentro para fora.
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Contrata um grupo de tecnocratas que lhe refrescam a gestão. José Roquette assume a direcção comercial nacional; Mário Adegas, a contabilidade; Ferreira Neto, o pessoal; e Mário Mosqueira do Amaral, a direcção internacional. São da sua safra as participações no Libra Bank, com o Chase Manhattan, o Bank of Tokyo, o Itaú e um banco holandês associado ao Rea Brothers, presidido por Walter Solomon, judeu alemão de Hamburgo, grande amigo de Manuel E.S.
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A abertura económica pedia abertura política. Em Angola, António E.S. lança, em 1973, o Banco Inter-Unido, em associação com o City Bank, e insiste com os delegados políticos locais na ideia de uma independência progressiva, que inclua os colonos e os movimentos de libertação. Sabe que é a única forma de manter o tecido empresarial em África, onde tem a maior plantação de café do mundo (CADA); mais de 15 mil hectares de cana-de-açúcar (Cassequel); a Companhia dos Açúcares de Angola; a importante Petrangol; a Sociedade Agrícola do Incomati; e a Companhia dos Algodões em Moçambique, em associação com os Lagos.
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Dentro da Casa dos Espíritos, a mudança começara pouco antes de 1974. Desaparecidos os três filhos do fundador (1973), a condução dos negócios passara para Manuel Ricardo - o primogénito do terceiro filho (Manuel). Pela lógica da varonia, anteriormente aplicada, a chefia do grupo caberia ao primeiro filho do mais velho dos três irmãos (José E.S). Mas este prefere ficar mais ligado à Tranquilidade, sendo Manuel Ricardo eleito por unanimidade. Uma nova geração chegava ao topo do grupo com projetos que não têm tempo para ser novos.
"Fascistas e capitalistas"
A revolução de 1974 apanha os grandes grupos económicos portugueses na cama. Nenhum deles está preparado para o dia seguinte. Como se não quisessem acreditar nos avisos que a agonia marcelista deixava escapar.
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Há um ano que os Estados Unidos não têm um embaixador em Lisboa. A Guiné declara unilateralmente a independência em 1973. Spínola lançara "Portugal e o Futuro" e há vigílias pela Paz na Capela do Rato. Em Março de 1974, é dado o último sinal: um grupo de militares descontentes falha o Golpe das Caldas, anunciando para breve a esquina política. "É um mistério...", reconhece Augusto Athaíde, também desprevenido.
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Manuel Ricardo tenta "navegar sem naufragar" - como diz - entre greves, comissões de trabalhadores, congelamentos financeiros e o controlo de movimento de capitais. Participa no Movimento Dinamizador Empresa-Sociedade (MDES). Lá estão, também, José Manuel de Mello, António Champalimaud, Joaquim Aguiar e Leonardo Ferraz de Carvalho, entre outros. Querem lançar um programa de evolução económica e empresarial baseado nas regras da democracia. Chegam a entregar o documento ao Conselho da Revolução, mas nada atrapalha a cadência do Processo Revolucionário Em Curso. "Fascistas e capitalistas" formam sinónimos nos slogans dos manifestantes que todos os dias gritam nas ruas. Os seus nomes são apontados em listas de malfeitores policopiadas e distribuídas pelo poder que caiu na rua.
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A mesma vanguarda revolucionária assaltaria a sede do MDES, "ali perto da Avenida da República: as mesas e as cadeiras voaram pelas janelas e os papéis foram todos queimados", lembra-se José Manuel de Mello, numa entrevista a Maria João Avillez, em 1994. Parecia não haver saída para os senhores da economia anterior.
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A paralisia do ver para crer toma conta dos maiores empresários portugueses. E, mesmo em Janeiro de 1975, quando Manuel Ricardo prevê a nacionalização do banco, nada faz - ou pode fazer - para prevenir uma saída sustentada. "Sou o comandante do navio. Vou com ele para o fundo", disse aos seus. E foi.
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A verdadeira revolução chegaria à banca à hora do almoço do dia 11 de Março de 75. Como sempre, o BESCL fechou as portas da Rua do Comércio ao meio-dia. Mal sabia que só as abriria uma semana depois para o público e 17 anos mais tarde para a administração dos Espíritos.
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No terceiro andar, trabalhadores do banco, armados, prenderam seis membros da família. José Roquette telefonara minutos antes para a administração do BESCL, de onde lhe respondera um ocupante: "O dr. Manuel Ricardo não atende este telefone, nem nunca mais o vai atender". Roquette parte para a Baixa, fura o cerco dos militares e acaba preso como outros elementos da família Espírito Santo. A revolução virara a mesa e o Decreto-Lei 132 A/75 anunciava a nacionalização da banca e dos seguros em Portugal.
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Ainda assim, o primo da nova geração, Ricardo Salgado, é convidado a continuar no banco. Escapara às capturas de 11 de Março e será bem recebido por Pinto Alho, líder do conselho de gestão. De Março a Abril de 1975, gere o conflito de fidelidade que resulta do facto de trabalhar numa empresa que lhe foi tirada.
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"Era importante estar dentro do banco", diria à SIC, em 1994. Mostrava jogo de cintura da família e tentava a libertação dos cativos através de contactos na Marinha, onde tinha feito o serviço militar. A cada chamada, Pinheiro de Azevedo garante-lhe que tudo se resolve depressa. Mas os dias passam sem resultados e Ricardo Salgado resolve deixar o País e o banco, rumo à Suíça. Aí se reúne com Mário Amaral que também "tinha fugido num navio que o Dinis, empregado lá do banco, lhe arranjou", lembra-se Ferreira Neto.
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Na prisão de Caxias, os presos da Família contam os dias e as noites, que somam quatro meses. Com Manuel Ricardo E.S., José Maria E.S., Carlos E.S Mello, o comandante Ricciardi, Jorge e José Manuel E.S, estavam também José Roquette, o duque de Palmela, José de Mello, Spínola, irmão do general, e Quirino Mealha, presidente do Borges & Irmão. Dias depois, entrava a administração do Sotto Mayor, compondo os metros quadrados mais financeiros do País.
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Manuel Piçarra não esquece aqueles dias, nem as conversas com Manuel Ricardo: "Disse-me que, se dali saísse um dia, iria começar tudo de novo. Que não tinha dinheiro seu. Apenas tinha amigos e vontade de recomeçar. Tinha, e ali me referia, grande sentido de família, que queria unida para o regresso."
Amigos no Mundo
Ironicamente, a revolução terá ajudado a evitar a possível queda dos Espíritos na quarta geração. Segundo Thomas Mann, é nessa altura que a ambição cede ao desperdício e a união familiar dá lugar ao estilhaço dos interesses.
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Mas os quatro meses de prisão dos mais destacados homens da Família, a fuga a salto para Espanha, em Agosto de 1975, e o refúgio numa "finca" perto de Toledo, sem muito dinheiro e fora do País, reúnem a família no essencial: o nome.
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É uma época de escolhas. Entregues a si próprios num mundo desconhecido, é como se estivessem prisioneiros da sua liberdade. Continuar juntos? Por onde começar? Em que lugar assentar? Que apoios privilegiar? Em que sectores apostar? Com quem contar?
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Os homens da Família encontram-se em Londres nesse mesmo Verão Quente de 1975 para desenharem uma estratégia. Reúnem-se na casa emprestada de um amigo romeno, Richard Stern, um poiso de exílio para banqueiros portugueses e princesas do Leste, com as suas famílias.
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Os contactos apontam destinos. Os Espírito Santo estão em Londres porque contam com o apoio precioso, de instalações e telefones, do Rea Brothers, presidido pelo velho amigo, Walter Solomon. O banqueiro, feito Sir pela rainha de Inglaterra, falará dos amigos portugueses a Genscher [Hans-Dietrich Genscher, à época vice-chanceler alemão e ministro dos Negócios Estrangeiros de Helmut Schmidt] e outros notáveis europeus.
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Visitas antigas de Cascais, como Bernardo da Holanda e os Rockefeller, estão presentes em pequenas recomendações que valem milhões.
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A história oficial reduz a 20 mil dólares (3500 contos) a base de reconstrução do grupo. Algumas casas de Lisboa são vendidas e parte do seu recheio cai nas mãos de antiquários estrangeiros que aproveitam a incerteza revolucionária para comprar a baixo preço. "Não há obras de arte que reconstruam grupos. Quanto muito, ajudam as pessoas a sobreviver", dirá Ricardo Salgado, em 1994. "Mas tínhamos activos intangíveis como a confiança e o conhecimento".
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Aquilo a que o "Wall Street Journal" intitula de "nome mágico que atrai a magia". Ou a finança. O suficiente para começar um projeto tecnicamente simples de capital de risco.
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Banqueiros sem banco, os Espírito Santo continuam a ser recebidos como nos melhores anos. Em Setembro de 1975, Manuel Ricardo não deixa de ser convidado para a reunião anual do FMI, em Washington. No jantar oferecido pelo Banco Mundial, o presidente McNamara dá-lhe a direita ao som de uma solidária salva de palmas. É o descontentamento para os representantes do Banco de Portugal e o crédito internacional para o novo Grupo Espírito Santo. Pouco depois, o Banco Mundial aposta no desenvolvimento do grupo na área agrícola no Brasil e no Paraguai.
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A liderança de Manuel Ricardo E.S. é reforçada no estrangeiro. Gere consensos e é determinado. Nesta fase, alguns membros da família passam para segundo plano. Na mesma linha, técnicos qualificados do banco, como José Roquette e Mário Mosqueira do Amaral, entram como accionistas da casa nova.
O regresso
O Brasil parece o destino preferencial. Em pleno desenvolvimento económico e com estabilidade política forçada, atrai fortes correntes de capital, especialmente dos Estados Unidos. Ricardo Salgado voara para lá, logo em Junho de 1975. Falara com o ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonson, que lhe abrira as portas nos ramos financeiro e agro-industrial.
António Espírito Santo tem incentivos para projectos no Brasil e no Paraguai. Constrói uma cidade no meio do nada, a 90 quilómetros das cataratas do Iguaçu. De tal maneira fica ligado àquela nova terra que, como pedira, as suas cinzas seriam lá depositadas em 1995.
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A onda de portugueses que vai para o Brasil depois da revolução tem uma atitude parecida com a dos príncipes russos do pós-guerra no exílio de Paris. Forma um grupo queixoso. "Usam um discurso que amplia os domínios que lhes tinham sido tomados. E gozam a infelicidade com galões de exílio político que os distingue dos emigrantes portugueses de sempre".
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Por contraste, a turma Espírito Santo mantém-se "calada na praia do lado". Tinha sido um dos objetivos da vanguarda de Abril. "Mas abusava da discrição. Cultivava uma snobeira de sinal contrário: silenciosa e trabalhadora", lembra-se quem ficava a meio da praia.
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Na verdade, seria exactamente o apoio dos emigrantes portugueses dos anos 20 uma das chaves dos Espírito Santo nas terras de Vera Cruz. David Guimarães, banqueiro, e António Carlos Almeida Braga, accionista controlador da seguradora Atlântico-Boavista, dão o primeiro empurrão financeiro ao grupo no Brasil. Uma palavra deixada cair por Manuel Queirós Pereira na direcção do Manufacturers Hannover e algum apoio pessoal também seriam providenciais para a descolagem dos primeiros negócios.
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As alianças feitas nos anos da véspera da revolução com o Chase e com o City Bank, traduzem-se agora em sociedade e empréstimos bonificados.
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A cultura de trabalho da Família manifesta-se com a exigência dos primeiros tempos. Manuel Ricardo instala-se em Londres sem staff doméstico. Enquanto o seu irmão António vive num apartamento no Rio com mais dez ou doze técnicos que trouxera de Angola para recomeçar o grupo agrícola. "Teria casa à sua disposição, mas quis ficar ali com todos os outros", lembra Ferreira Neto.
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As equipas que quiseram continuar com os Espírito Santo formavam um "activo" importante para o arranque lá fora. "Fiquei encarregado de transmitir aos empregados da Cassequel [de Angola] que a família Espírito Santo não lhes garantia mundos e fundos no Brasil. Mas teriam subsistência se quisessem continuar a trabalhar com eles." Cerca de 100 quadros quiseram.
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Miami, Suíça, Paraguai, Bahamas, Zaire, Luxemburgo e Londres são novos pontos cardeais para o relançamento dos Espírito Santo em mais de 30 empresas. Sempre com uma postura pouco aculturada, "iguais, com as mesmas piadas e o mesmo clima de grupo em cada sítio", diz um colaborador.
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Um clima de grupo que também conhece divisões. A decisão de voltar para Portugal, por exemplo, tarda por falta de consenso. A matriarca, Isabel E.S., ficara em Azeitão com o apoio do filho Bernardo. Tal como a duquesa de Palmela, sua irmã, ficara no Calhariz. Também Mary Cohen ficara no País com as quatro filhas. Portam-se como âncoras que são. Defendem o território e acolhem os emigrados nos Natais que se seguem a 1978.
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E nem a AD, entre 1979 e 1983, convence os Espírito Santo ao regresso a Portugal. Será Mário Soares, em 1984, com o socialismo meio fechado na gaveta, a incitar Manuel Ricardo E.S. a voltar para o País em força. O banqueiro pondera o convite do primeiro-ministro e logo lhe refere as indemnizações devidas.
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Assiste-se à austeridade do Bloco Central, mas adivinha-se a retoma da economia na véspera da entrada na Europa. Os indicadores favorecem os optimistas e a Família não terá dificuldades em convencer os parceiros do Crédit Agricole a abrirem o Banco Internacional de Crédito, em Lisboa, no final de 1986. Mas só depois da revisão constitucional de 1989 será possível tentar recuperar o controlo das empresas e do banco.
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O grupo cria músculo financeiro. Parte da holding financeira está cotada nas Bolsas de Luxemburgo e de Londres. A conquista de Nova Iorque dá-se em 1991. Um sucesso que garante manchetes nos jornais americanos. A próxima escala será Lisboa. A família quer de volta as duas jóias: a Tranquilidade e o BESCL.
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A custo ganha a seguradora. O banco será mais fácil. Se na Tranquilidade foi decisivo o apoio do Crédit Agricole, no BESCL o grupo terá do seu lado os potenciais concorrentes, que se inibem da corrida respeitando o direito histórico.
Manuel Ricardo conduz o banco a bom porto, mas não terá o gosto de ver o BESCL de novo nas mãos dos seus. Morre, inesperadamente, em Março de 1991.
Uma questão de confiança
Em Setembro desse ano, os Espírito Santo podem, finalmente, subir ao 15º andar no número 195 da Avenida da Liberdade. Eliminam os tabiques que então dividiam as salas de cada administrador e recuperam o clássico open space em que sempre conduziram os seus interesses. Na imensa sala - claríssima - com fronteiras de vidro sobre a Avenida alinham-se agora as oito secretárias dos administradores, todas viradas para o centro, como se de uma távola redonda se tratasse. "A união familiar dá trabalho. As pessoas têm de falar", explica José Manuel Espírito Santo.
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A rara colecção de quadros que animava os gabinetes dos homens do Estado passou para os corredores e salas comuns daquela espécie de olimpo financeiro. Sobrou fleuma para não caçar os trabalhadores, que a 11 de março de 1975 pegaram em armas para prender a administração. "Recomeçar sem passado" foi o verbo. Ou nem tanto.
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Há várias lições que se tiram da ruptura de 1975 e da estreia internacional. Não voltam a apostar tudo em Portugal e elegem um regime de joint venture para os novos projectos. Repetem o exemplo do primeiro avô, José Maria Espírito Santo. "Saem bem dos negócios, no tempo exacto para o investimento financeiro. As passagens pela Telecel e pela Petrogal são os melhores exemplos dessa política. E mantêm uma rede de influência com profissionais da sua confiança em sectores estratégicos", diz um observador.
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O tempo e o número dos parentes tem efeitos corrosivos implacáveis para qualquer clã. "Estão todos no mail da Fundação e são convidados para tudo o que aqui acontece", diz Maria João Bustorff, [no ano 2000] directora da Fundação Ricardo Espírito Santo, "mas só aparecem10 por cento".
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Os Espírito Santo mantêm-se unidos e dispersos. O ramo do primeiro irmão - José - isolou-se. Em 1975, apesar de ser o único com alguma folga financeira fora do País, aposta timidamente na reconstrução do grupo.
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Ricardo E.S - o segundo irmão - teve apenas quatro filhas o que, pela matriz varonil do grupo, atrasou por uma geração o acesso dos descendentes a cargos de chefia. Um dos genros, o comandante Ricciardi, assume a presidência do grupo em Março de 1991, ao mesmo tempo que Ricardo Salgado (neto) lidera a holding financeira.
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Haveria mais escolha entre os onze filhos do terceiro irmão (Manuel) no unidíssimo ramo Arnoso Espírito Santo. A sucessão terá sido mais pacífica do ponto de vista técnico do que familiar. Mas os irmãos de Manuel Ricardo estavam ligados a projetos especializados. Apenas o primo Ricardo Salgado se mantivera sempre na área financeira, acompanhando a estratégia de conjunto com o presidente anterior. De qualquer modo, a seis meses de recuperação do BESCL não havia lugar para divisões.
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Hoje [ano 2000], há apenas duas dezenas de Espíritos que se entregam à "firma". Três administradores, um director e dois juniores no BES. É regra da casa começarem pelo balcão. Como regra é, serem apurados apenas os que dão garantias de não fazer estragos. Ao banco e ao nome dentro do banco. "As decisões são tomadas de uma maneira muito objetiva", garante Ricardo Salgado.
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Mas esse não é o trunfo da durée da única dinastia financeira que chegou aos nossos dias: "Houve um Norte. Assente na confiança no seu nome e na 'fairness' ou neutralidade, se preferir", define Augusto Athaíde [em 2000].
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Parece que a história chegou ao fim. A Família resgatou o seu banco e, depois da fusão com o BPI, devolveu-lhe o primeiro lugar no topo do ranking privado português. Esgotado o sonho da reconquista, sobra a rotina da manutenção. Ricardo Salgado contraria: "A história nunca chega ao fim, é um processo contínuo, que espero ser sustentado."
Publicado originalmente na edição de 3 de março de 2000 na revista do jornal "O Independente"
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