Paulo Portas
foi ao Parlamento
A análise de Manuel Amaral, investigador, sobre um discurso de Paulo Portas no Parlamento e a dignidade das instituições.
O vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, foi à Assembleia da República no dia 28 de março para participar numa sessão plenária em que se discutia a interpelação do Bloco de Esquerda ao Governo sobre o "Balanço do PAEF (Programa de Apoio Económico e Financeiro), a avaliação da ação da troika em Portugal e a transição para o pós-troika" e participar na discussão de um projeto de resolução, também do Bloco de Esquerda, que chumbaria a atuação da troika e rejeitaria “o caminho de austeridade imposto pelo Tratado Orçamental no pós-troika”.
Vestindo um casaco desportivo azul com grandes botões dourados, normalmente chamado pelo seu nome inglês blazer, uma camisa às riscas azuis largas e uma gravata de fantasia, uma falha no decoro protocolar normal no presidente do CDS-PP; vestuário que contrastava com os outros membros do Governo presentes, que usavam fato e camisas brancas com gravatas neutrais, assim como com praticamente todos os membros masculinos da Assembleia da República presentes na sala das sessões. De facto, tirando dois deputados do Bloco de Esquerda e um do Partido Comunista, que não usavam gravata, mas que estavam de fato, só o deputado João Semedo estava ao nível do orador ao vestir uma camisola de lã – um sweater. O presidente do CDS-PP ao vestir um “fatinho de marujo” parece ter pensado que ia a uma Garden Party, à tarde, sob as influências de uma brisa marítima, bebendo um copo de Pisang Ambon – um licor de banana de cor verde.
Paulo Portas ao terminar o debate, subiu novamente à tribuna, declamando um discurso num tom mal-humorado como é timbre da classe política portuguesa e que, como é normal nas elites que nos governam desde os fins da primeira metade do século XX, não conseguiu elaborar de acordo com regras mínimas da retórica – sem exórdio, uma introdução ao tema que se vai elaborar, com uma exposição anárquica e tão-pouco uma peroração (a conclusão) clara – tendo, no decurso da prédica, utilizado uma argumentação que pôs em causa a ética, dando explicações que ignoravam as mudanças legislativas promovidas pelo Governo a que pertence e modificando os números publicados por entidades oficiais, consideradas idóneas tanto nacional como internacionalmente, com o objetivo de criticar as posições do “maior partido da oposição” e não do que tinha originado o debate, pondo em causa regras básicas da cortesia política.
A maneira como se dirigiu aos deputados do maior partido da oposição não seguiu o protocolo utilizado no Parlamento português – apelidando permanentemente os deputados da oposição por “vossas excelências”, possivelmente com intuitos humorísticos, acabou por chamar os deputados de “vos’celencias” (uma expressão coloquial indigna de ser usada numa qualquer assembleia e muito menos na da República) pela qual não foi repreendido.
Para defender a diminuição do número de beneficiados com o Rendimento Social de Inserção, uma medida de proteção social, afirmou que muita gente tinha saído do programa porque se tinha descoberto que “por acaso tinham mais de cem mil euros na conta bancária… porque é essa a condição de recursos…”, o que contraria totalmente o que a lei diz, quando declara que “o acesso à prestação RSI está dependente do valor do património mobiliário e do valor dos bens móveis sujeitos a registo, do requerente e do seu agregado familiar. Cada um deles não pode ser superior a 60 vezes o valor do Indexante de apoios sociais (€ 25.153,20).” Isto é, as contas bancárias não podem ter mais de 25 mil euros e não os 100 mil euros apregoados pelo vice-primeiro-ministro, e mesmo contando com os bens imóveis, o valor seria de 50 mil euros, metade dos números avançados por Paulo Portas.
Continuando a sua preleção, pouco tempo depois, o orador apresentou argumentos para atacar a atuação do Governo anterior, do Partido Socialista, afirmando que, se era claro que o rendimento dos reformados tinha baixado, a “verdade” é que, após os impostos, o rendimento tinha aumentado, não referindo de novo em que fonte se baseava.
As informações dadas aos deputados contrariavam os do Instituto Nacional de Estatística, que no seu boletim Destaque – Informação à Comunicação Social de 24 de março, distribuído quatro dias antes do debate, afirmava que “o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (EU-SILC), realizado em 2013 sobre rendimentos do ano anterior, indicava que 18,7% das pessoas estavam em risco de pobreza em 2012, mais 0,8 p.p. do que em 2011 (17,9%),” explicitando que a taxa de risco de pobreza (%) considerando as transferências sociais, tinha passado “
- após transferências sociais de 18,0% em 2010 para 18,7% em 2012;
- após transferências relativas a pensões de 25,4% em 2010 para 25,6% em 2012, e
- antes de qualquer transferência social de 42,5% em 2010 para 46,9% em 2012.”
Números claros, que desmentiram o vice-primeiro-ministro na própria Assembleia, mesmo que não sendo explicitamente formulados devido a interferências da presidente da Assembleia da República ao repto do deputado do PS, que os quis desmontar. O que se estranha.
Os argumentos errados apresentados em instituições de grande dignidade devem ser sempre considerados paralógicos. Isto é, falsos mas apresentados sem intenção de enganar e, para isso, basta que se cumpram as regras básicas. Nessas regras incluem-se as do discurso, as de exposição e, claro, as de indumentária.
Quando os argumentos apresentados são descaradamente errados prescindem automaticamente da complacência das instituições, ou deviam. Até porque a complacência pode desviar-se da forma de apresentação dos argumentos para se preocupar com a capacidade intelectual de os apresentar convenientemente.
Porque é que o presidente do CDS-PP apresentou ao Parlamento dados errados? Por incapacidade da sua equipa de os recolher? Por incapacidade sua de compreender a apresentação de dados estatísticos? Para ganhar um minuto de palmas enquanto discursava?
O erro do primeiro argumento foi tão claro que não houve qualquer reação de apoio por parte do grupo parlamentar do partido que dirige, e muito menos do PSD. Já no segundo, possivelmente devido à ignorância dos números pela maioria dos deputados da maioria ou devido à reação indignada dos deputados da oposição pela apresentação inexacta do argumento, já houve algum apoio.
Pode estar aqui a base da compreensão da atuação do vice-primeiro-ministro. Não tendo argumentos legítimos para apresentar, anunciou sofismas, isto é, argumentos falsos, que remetem não para a razão mas para o coração – o sentimento.
Estes argumentos criam a posteriori empatia com o orador que é alvo das críticas violentas que a falsidade dos dados promove. Parece que Paulo Portas acha que a única maneira de criar empatia do público consigo próprio é provocar a reação violenta da bancada da oposição. Apresentando sofismas, e quanto mais evidentes eles forem melhor, ganha a empatia dos deputados da maioria – e dos mais cândidos, ganha mesmo, possivelmente, a simpatia.
Este tipo de atuação do vice-primeiro-ministro, degradando a qualidade da instituição onde discursou, não deixa de minar a sua credibilidade. Como disse Lincoln “pode-se enganar alguns o tempo todo e todos durante algum tempo, mas não se pode enganar todos o tempo todo”.
Investigador
IN "CORREIO DA MANHÃ"
26/05/14
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