Para acabar com
o 25 de Abril
No nosso mundo
de imagens televisivas, a aproximação de uma efeméride como os 40 anos
do 25 de Abril relança a tradicional confusão entre os excessos de
"informação" e a certeza de uma verdade universal e unívoca. Estão
garantidos, assim, os mesmos estereótipos visuais (o Largo do Carmo,
etc., etc., etc.), pontuados pela mesma Grândola, Vila Morena reduzida a
jingle publicitário, enquadrados pelos mesmos discursos de
"resistência" que, em alturas destas, nos levam a pensar que somos dez
milhões de almas alegremente filiadas no Partido Comunista Português...
Não
é fácil falar disto, quanto mais não seja porque a minha geração
(digamos: os que, em 1974, saíam da adolescência ou se questionavam
sobre a sua condição de jovens adultos) tem legítimas razões para fazer
valer as suas memórias de um regime que destinava os corpos e as almas
dos rapazes à crueza de uma terrível guerra colonial. Nem esta crónica é
sobre a complexidade política dos momentos que então vivemos, entre a
alegria mais pura e a mais perturbada perplexidade. O que me confunde é o
facto de a minha tão frágil geração servir de caução televisiva para se
continuar a fazer uma história do 25 de Abril em que não há gente viva,
plural e contraditória, mas apenas marionetas banalmente "ideológicas".
Para
acabar com este 25 de Abril de poucas ideias e muitos spots
televisivos, corrigir a romantização pueril do PCP é apenas um detalhe -
afinal, o partido que desempenhou um papel fulcral no combate ao
fascismo foi o mesmo que, nas atribulações do PREC, tentou controlar em
absoluto o espaço televisivo. Será preciso, acima de tudo, que a minha
geração, em vez de se iludir com uma uniformidade simbólica que nunca
possuiu, tenha a coragem de não recalcar a felicidade que também existiu
antes do 25 de Abril. Como? No sentido em que Talleyrand evocava os
dramas da Revolução Francesa: "Quem não viveu no século XVIII antes da
revolução não conhece a doçura de viver e não pode imaginar a felicidade
que existe na vida." São palavras que servem de epígrafe a esse
belíssimo filme que é Antes da Revolução (1964), de Bernardo Bertolucci,
condensando uma sensação de utopia e desencanto que raras vezes
encontrou expressão no cinema português - o caso mais tocante, Perdido
por Cem (1973), de António-Pedro Vasconcelos, nasce da circunstância
admirável e "contraditória" de ser anterior ao 25 de Abril.
Há
outra maneira de dizer isto: 40 anos depois, creio que uma prioridade
cultural e política é a discussão do populismo televisivo e dos seus
efeitos normativos nas mentes e comportamentos do povo. Entretanto,
vamos gastando preciosas energias a tentar esclarecer se José Sócrates
tem ou não o "contraditório" que se impõe... Por mim, fico feliz por
Marcelo Rebelo de Sousa ter direito à doçura do seu viver televisivo,
mas não foi apenas para isso que se fez o 25 de Abril.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/03/14
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