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A Europa que nunca se debate
Historiador
IN "PÚBLICO"
01/03/14
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A Europa que nunca se debate
Caminhamos para uma nova eleição para o Parlamento Europeu e já
sabemos de antemão que as questões europeias não vão ser debatidas.
Podemos desejar que seja diferente, mas é assim por razões tão poderosas
que nem vale a pena passarmos o tempo dessas eleições a lamentar-nos
por isso não acontecer.
Não será por vontade dos principais candidatos, que
certamente desejariam e vão tentar fazê-lo, principalmente Paulo Rangel e
Francisco Assis, nem sequer por vontade da coligação PSD-CDS, que
também preferiria, já por outras razões, que o debate fosse sobre a
Europa e não sobre o estado de Portugal. Mas isso não vai acontecer por
uma razão de fundo que é incontornável: o debate europeu não faz parte
de qualquer agenda que os povos considerem “sua”, que possa ser
prioritária em países como Portugal e, aliás, em quase todos os países
da União Europeia. A participação dos povos das nações europeias foi e é
persistentemente posta à margem de todas as decisões importantes
tomadas no âmbito da União Europeia, por isso, não se pode esperar que
atribuam qualquer interesse a mobilizar-se para votar para uma
instituição que não lhes diz nada e que não sentem como relevante para a
sua vida, neste caso o Parlamento Europeu.
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Os únicos a quem a
questão europeia mobiliza são os adversários da União Europeia, seja do
próprio processo de integração europeu em geral, seja da actual
configuração da União, com a combinação de um directório de facto,
com uma gigantesca burocracia que se autojustifica como uma tecnocracia
que “sabe” contra políticos e parlamentos que “não sabem” e são apenas
ruído. E ilude-se quem não perceba que os sentimentos antieuropeus são
hoje muito mais próximos do povo e da sua vontade do que o europeísmo
utópico, de engenharia política antidemocrática e iluminada. Não
encontrando no mainstream da vida política um reflexo das suas
mais que justificadas preocupações sobre o curso autoritário e
antidemocrático, falsamente federalista, mas inigualitário, com uma
enorme duplicidade de critérios no tratamento das nações entre o Norte e
o Sul, votam em partidos como a Frente Nacional em França, ou no UKIP
no Reino Unido. O sobressalto hipócrita sobre o “ascenso da
extrema-direita”, muitas vezes dirigido a partidos que são apenas
eurocépticos, mas que não tem sentido demonizar como sendo de
extrema-direita, reflecte mais os erros crassos dos europeístas do que
um surto de nacionalismo antieuropeu.
É interessante, aliás,
verificar que mais facilmente os europeístas classificam as posições dos
seus adversários a partir do binómio nacionalismo-integração, não
aceitando discutir que mesmo o soberanismo renascente nalguns países
(não em todos) se deve a outra coisa, que, essa sim, eles evitam a todo o
custo discutir: o curso autoritário e antidemocrático da União
Europeia, que se acentuou muito na última década. E esse é um problema
gravíssimo, que gera efeitos perversos, incluindo o renascer soberanista
e mesmo nacionalista.
Veja-se o modo como a União Europeia, pela
voz de Durão Barroso e mais mil e um comentaristas europeístas, reagiu
aos resultados recentes do referendo suíço limitando a emigração –
ameaçando os suíços porque votaram “mal”. Eu teria votado contra as
propostas referendárias suíças sobre a emigração, e considero que é
de criticar o seu resultado, mas nunca me esqueço que os suíços votaram
livremente e que é suposto em democracia respeitar-se o resultado das
votações. É, aliás, péssima esta tendência na União de não aceitar
resultados, quando eles vão contra a ortodoxia dominante nas elites
burocráticas e governamentais que a governam, e de exigir um determinado
resultado, realizando-se quantos referendos sejam necessários até esse
resultado se obter. Ou, pior ainda, quando um resultado é um “não” a um
política crucial da vanguarda europeísta da União, como aconteceu com a
Constituição Europeia na Holanda e na França, abandonar qualquer
consulta popular e introduzir à socapa as mesmas medidas chumbadas no
voto popular noutros documentos apenas aprovados entre governos, como
aconteceu com o Tratado de Lisboa.
A hipocrisia face ao voto suíço
vem de que, bem vistas as coisas, a legislação proposta não é assim tão
diferente de outra legislação semelhante na União Europeia, em
particular fora do Espaço Schengen, e que mesmo dentro dele as normas
nacionais restritivas da livre circulação das pessoas são habituais e
acompanhadas por práticas muito para além das leis, como os ciganos
romenos ou búlgaros podem testemunhar. Acresce que Lampedusa é na Europa
da União e não na Suíça.
Uma das razões pelas quais as pessoas, a
começar pelos portugueses, não têm o mínimo interesse pelo debate
europeu e vão naturalmente “impregnar” estas eleições de questões
nacionais é que todas as decisões fundamentais sobre o seu destino, quer
as que conhecem, quer as de que suspeitam, quer as que ignoram são cada
vez mais tomadas fora de Portugal por governos estrangeiros, que, eles
próprios, actuam em função dos seus interesses nacionais, ou por uma
burocracia iluminada que não vai a votos, nem tem de se preocupar com
legitimidades eleitorais.
É exactamente porque o debate europeu é
subvalorizado que ninguém cuida das posições dos candidatos. Paulo
Rangel é o mais europeísta de qualquer candidato europeu até agora.
Basta assistir às suas intervenções e ao que escreve, por exemplo no
PÚBLICO, para ver como ele é um crítico da própria ideia de soberania e
independência, e é favorável a uma deslocação de muito do processo
decisório do Parlamento português para instâncias europeias, como,
aliás, está a acontecer já com o direito de veto por Bruxelas do
Orçamento português no âmbito do Pacto Orçamental, ou seja, sem ser em
situação de “emergência financeira”, como normalidade. Os portugueses
são cuidadosamente mantidos à parte de um processo de minimização
daquilo que é a função fundamental de um parlamento numa democracia,
votar o Orçamento. Foi a reivindicação de “no taxation without representation” que iniciou a guerra da independência americana contra os ingleses.
Rangel entende que não basta que este processo seja de facto, deve ser também de jure,
como defendeu num debate na Fundação Soares dos Santos. Num artigo
recente congratula-se com a deslocação da decisão constitucional do
âmbito nacional, no caso alemão, para o Tribunal Europeu, o que, por
analogia, implicaria que no caso português uma subordinação da
Constituição Portuguesa a um direito constitucional da União, que era
uma das tendências implícitas na chamada "Constituição Europeia",
chumbada pelo voto em vários países.
No PPE ele alinha com o
europeísmo mais extremo, onde até agora o próprio PSD era muito mais
moderado, mas, como ninguém cura de ser coerente nestas matérias (com
excepção de Rangel), mas apenas utilitário e pragmático, já há candidato
e basta. Como de há muito tempo sei que o CDS engole tudo que se lhe
põe no prato, é interessante ver como este partido, recentemente
convertido à “eurocalmaria”, pode fazer parte de uma lista encabeçada
por um “euro-extremista”. Ter posições próprias e pensadas é um mérito
de Rangel, que facilita e dá transparência ao debate, mas desconheço
como é possível compatibilizá-las com as posições tradicionais do PSD e
do CDS, muito mais conservadoras no plano europeu.
Com candidatos
como Rangel e Assis, que é bastante próximo de muitas posições de
Rangel, o debate europeu ficará prejudicado por se fazer apenas dentro
de uma ortodoxia europeísta que, no meu ponto de vista, de há muito
perdeu o contacto com a realidade das nações europeias, com aquilo que é
hoje a União Europeia, e com a vontade dos povos e nações da Europa.
Estamos dentro de um voluntarismo iluminado, que responde aos problemas
acentuando a mesma receita e que só pode continuar a existir e a moldar a
União se não for a votos, a começar pelo voto referendário que é o que
melhor exprime um “sim” ou “não” a questões que são simples, mas que
ninguém quer colocar com clareza. Por tudo isto, para a reflexão sobre a
Europa as eleições para o Parlamento Europeu serão inúteis. Já não
acontecerá o mesmo sobre a política portuguesa.
Historiador
IN "PÚBLICO"
01/03/14
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