2035
Dantes, escrever
sobre um ano futuro distante era um puro exercício de ficção em que a
realidade conhecida ficava arrumada a um canto e era apenas usada como
terreno de germinação de fantasmas plenamente potenciados na imaginação
ficcional do tal ano futuro. George Orwell fê-lo de forma notável em
1984, Roberto Bolaño mais ainda em 2666.
Há agora uma narrativa
de ficção sobre o futuro que está aí a ser contada aos portugueses.
Chama-se 2035 e tem como centro da intriga o cumprimento escrupuloso do
Tratado Orçamental que a maioria governamental e o PS aprovaram
pressurosamente como penhor de um país bom aluno e grato aos seus
mestres disciplinadores. O enredo é conhecido: para cumprir as metas
estabelecidas pelo dito Tratado Orçamental, designadamente o rácio de
60% do PIB para a dívida pública, o País terá não só de manter toda a
política de austeridade que já lhe foi imposta como acrescentar-lhe mais
outro tanto durante os próximos vinte anos. Ou seja, até 2035. Só assim
se conseguirão os excedentes de 3% matematicamente imprescindíveis para
cumprir aquele objetivo que os aprovadores do tratado lhe amarraram sem
remissão.
2035 segue portanto a estratégia ficcional de Orwell.
Do presente retém os traços de horror económico e de destruição de
princípios de organização social como o da dignidade, o da coesão ou o
da centralidade do contrato social. E confronta-nos com um futuro onde
esses traços são potenciados até ao grotesco. Excedentes anuais de 3%
para cumprir o Tratado Orçamental supõem, por exemplo, a deserção quase
completa do Estado do campo da saúde, que fica a ser totalmente paga
pelas pessoas e pelas famílias. Ou uma subida ainda muito mais agravada
da carga fiscal sobre o trabalho,
ultrapassando o limiar da absoluta insustentabilidade das vidas comuns.
É desse futuro medonho, feito do agravamento indizível do nosso
presente, que nos fala 2035.
É uma obra coletiva, com capítulos da
autoria de Passos Coelho, de Paulo Portas e de vários outros autores e
com organização e prefácio de Cavaco Silva. O organizador e prefaciador
passa-nos o essencial do argumento da obra: cumprir sem pestanejar os
ditames de Bruxelas é o maior dos desígnios nacionais, e isso há de ser
assim até 2035. O pós-troika é a continuação da troika por outros meios.
Ou pelos mesmos mas mais fortes.
Por ser assim, diz-nos Cavaco
Silva, é de toda a conveniência que se firme um acordo entre a atual
maioria e o Partido Socialista. Cavaco retoma assim a tese de "que se
lixem as eleições". Conveniente mesmo era que não houvesse essa maçada
até 2035 para que a linha consensual - a sua, naturalmente - governasse
sem ser minimamente questionada (sabe-se como questionar os governos
causa nervoso miudinho aos mercados...). O enésimo apelo de Cavaco ao
consenso entre a maioria e o PS e o queixume de que Portugal é um país
estranho porque Governo e oposição não se entendem sobre essa coisa
cristalina que é a completa similitude entre a troika e o pós-troika são
o guião de toda a narrativa de 2035.
Não surpreende que os
autores desta ficção do horror tenham evidenciado o maior dos
nervosismos com o aparecimento de uma narrativa rival que antecipa um
exercício contrafactual à narrativa de 2035. A coisa é simples: para ser
best-seller, 2035 alimenta-se da ficção de que o presente de horror
súbito só pode dar lugar a um futuro de horror permanente. Foi isso que
70 outros autores vieram negar, pondo também em farrapos a lengalenga de
Cavaco de que a desgraça de Portugal é a falta de consenso para se
cumprir a sua profecia negra de 2035. Consenso, afinal, há. Mas é para
evitar que 2035 se cumpra como horror.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/03/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário