Código genético (2)
Não existe nenhum carisma para abafar os outros.
1. Nada é inocente, nada está irremediavelmente perdido, tudo precisa
de nascer de novo, a começar pelas palavras da fé cristã e dos seus
rituais. A dignidade essencial do ser humano manifesta-se, precisamente,
na capacidade de se interrogar, de se corrigir, de mudar de rumo, de
não se conformar com o mundo tal como se apresenta. A história do
cristianismo está carregada de ambiguidades, de equívocos, de pecados,
mas a conversão faz parte do seu caminho de reencontro com o seu “código
genético”.
É legítimo dizer, ainda que
de modo esquemático, que o cristianismo foi-se afirmando face à cultura
e à religiosidade antigas, seguindo um duplo caminho, nem sempre
linear, como afirma Isidro Lamelas. Em relação ao judaísmo, rompeu com
as práticas rituais e prescrições legais impostas pela religião da Lei,
mas não deixou de assimilar muitos dos seus hábitos litúrgicos e
cultuais. A prioridade da fé sobre as obras, pelo menos na perspectiva
de S. Paulo, implicava, segundo uns, uma ruptura total com a religião de
Moisés, enquanto outros preferiam sublinhar a continuidade entre a fé
de Abraão e a nova fé em Cristo. No extremo da primeira tendência, temos
Marcião e os seus seguidores; no outro extremo, encontramos o
judeo-cristianismo persistente, em muitas versões.
No respeitante
ao mundo pagão, também foi duplo o critério seguido. Por um lado, foram
rejeitadas as suas práticas e convicções religiosas, na medida em que
não eram compagináveis com a revelação bíblica. Por isso, os primeiros
cristãos foram acusados de ateísmo. Por outro lado, foi assumida a
natural religiosidade pagã como preparação para acolher a “verdadeira
religião”, identificada com o cristianismo. Enquanto, porém, no
paganismo a religião se resume ao culto que, por sua vez, não se
distinguia da cultura (vida social e política), no cristianismo, a fé
precede o culto, sem se confundir com nenhum tipo de cultura ou sistema
religioso (1).
2. O duro e persistente conflito
que opôs o cristianismo ao judaísmo e ao paganismo explica-se pela clara
destrinça que Jesus Cristo e a sua herança vieram estabelecer entre fé e
religião.
A fé cristã não assenta, de facto, nem num Livro
sagrado nem na observância da Lei e na reverência ao “Deus dos Pais”,
dos antepassados. A sua referência existencial é a experiência do
encontro com Jesus real reconhecido como Cristo, Filho de Deus (Abba) e que partilha connosco o seu Espírito de amor filial ( Rom. 8, 14-17).
Como
lembrei no Domingo passado, é num credo trinitário que renascem, por
uma radical transformação espiritual, os que acedem ao Baptismo cristão:
”Eu te baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Essa
invocação é tão decisiva que, no começo da Eucaristia, é sempre com ela
que marcamos o nosso corpo celebrante. O desejo de quem preside à
Eucaristia retoma as palavras de Paulo (2Cor.13,13): A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco!
Compreende-se
que para o Judaísmo e para o Islão, o Cristianismo continue a ser
considerado uma religião politeísta ou, pelo menos, um monoteísmo
impuro. No cristianismo de rito latino, tirando a atracção que a fé
trinitária exerce em algumas correntes místicas, não vai muito além de
uma misteriosa fórmula abstracta, de uma matemática estranha, sem
influência real, concretizada apenas no nome ligado a algumas pessoas,
igrejas ou hospitais. A rede de subtilezas dos teólogos parece o fruto
de uma ociosidade mal empregue. O grande filósofo da modernidade, I.
Kant, confessava a inutilidade religiosa e ética do dogma da Trindade.
3. Resta
portanto a questão de fundo: adianta ou não a fé trinitária das igrejas
cristãs implicada na Incarnação do Verbo? Sem ela que perdem os
cristãos, as igrejas e a sociedade? Será mesmo assim tão essencial para
viver e entender o sentido da vida?
Segundo o filósofo, teólogo e
politólogo dominicano, Paul Blanquart (2),a simbólica trinitária é um
modelo social e uma forma de pensar e repensar o mundo e a sociedade. É o
modelo da perfeita democracia: na indestrutível unidade de Deus, as
pessoas são todas iguais, todas activas, todas diferentes, sem
subordinação e em comunhão. É a existência simultânea do uno e do
múltiplo.
Se o ser humano, no mundo, é criado à imagem de Deus,
não é indiferente que esse Deus seja pura solidão ou uma comunhão de
pessoas. Na experiência humana, se insistimos apenas na unidade,
esquecendo as diferenças, temos uma unidade vazia. Se, pelo contrário,
insistirmos nas diferenças, pomos em causa a igualdade. A simbólica
trinitária serve para, no plano mental e na realidade social, promover a
máxima unidade na máxima diversidade. Se nesse modelo, não existe a
subordinação das pessoas, também não existe a vontade de poder de umas
sobre as outras, existe a alegria da comunhão nas diferenças.
Não é
por acaso que Paulo, nas suas cartas, é pela unidade da Igreja na
multiplicidade de carismas. Não existe nenhum carisma para abafar os
outros.
Não podemos deixar de ouvir a voz de Leonardo Boff, que entende a Trindade como a melhor comunidade. Fica para a próxima.
1)Sim, Cremos. O credo comentado pelos Padres da Igreja, UCP, 2013
2) Paul Blanquart, Une Histoire de La Ville, Découverte, 2005
IN "PÚBLICO"
09/02/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário