Eusébio
Usava o instinto da pantera, mas tinha a delicadeza da gazela. Era um homem bom e de repente não sei bem o que dizer.
Não por medo de ser banal –
há mais pungentemente banal que a morte? – mas pela dificuldade de me
expressar face à partida de alguém que, coisa tão, tão improvável numa
vida, só me deu alegrias e o que se diz de alguém capaz de tal proeza?
Incontáveis,
esfuziantes, fulgurantes, delirantes, disparadas alegrias. Tantas
vezes, centenas de vezes, milhares de vezes. Alegrias com uma bola mas,
bem vistas as coisas, só pode perceber isto quem – como ele, como eu –
gosta de bola quase sobre todas as coisas. A sua história confunde-se
com a minha história no Benfica que vai longa, tinha 13 anos quando
deixei a família em suspenso ao afirmar a minha novíssima identidade
encarnada – no Campo Grande não se era do Benfica.
Eusébio
tocou-me desde o seu primeiro momento diante de nós todos. Não era só a
ferocidade do génio, o golpe de asa do sobredotado, a pantera. Não era
só o deus que rematava e era golo, o felino que marcava de qualquer
ângulo do relvado e a bola entrava. Não era só o ter sido universal
antes de se ser “global”. Não: era por ser ele. Eusébio como ele era.
Eusébio da Silva Ferreira. Homem afável e amável, determinado pela
circunstância da sua inteira e intacta, até ontem, simplicidade. A mesma
de quando ele aterrou em Lisboa, vindo do mais belo lugar do
desaparecido Império e começou a tocar na bola como nunca víramos. Mas
não é senão essa circunstância que fez a sua espantosa diferença: o dono
do génio não era contaminável pela poção tóxica da glória mesmo que
quase só tivesse havido glórias. O mito não era corrompível, mesmo
quando mundialmente mitificado. E porque era simples, acreditava.
Acreditou no Portugal-Coreia do Norte, já quase na pré-história, mas eu
lembro-me e foi acreditando. Até ontem.
E depois era um
sentimental e eu gostava disso: Eusébio chorava nos momentos
“impossíveis”, os de estado de graça e os de estado do demónio. Chorava
dentro e fora das quatro linhas, não é qualquer um que tem a
simplicidade de expor a raiva ou o supremo júbilo e vivi com ele dois
momentos antagónicos desses, sombra e luz: uma derrota em Bruxelas numa
Taça Europeia, há já muitos anos, onde viajei a convite do Benfica e
conheci melhor a pantera, mas foi um momento sombrio, duas almas penadas
chorando sobre o leite derramado. A alegria foi a maior que me lembro
num estádio de futebol quando, frente à Inglaterra, Ricardo defendeu um penalty,
e Eusébio chorou, agarrado a uma toalha e eu chorei, a dois metros de
distância de Victoria Beckham que em má hora tinha vindo a Lisboa ver
jogar o marido. (Emoldurei o bilhete desse desafio por achar que
humanamente não poderia haver emoção que superasse o que ali se viveu
nem o instante improbabilíssimo e por isso absolutamente milagroso da
defesa desse penalty, estado de graça é isso.)
Eusébio
fez por Portugal o que é difícil conceber e ainda mais contabilizar:
levou-o ao mundo, a vários e longínquos mundos, uniu o sempre desunido
mosaico da lusofonia, representou todos e cada um de nós, tornou
indestrutível o elo que ligava o seu nome ao do país.
Genialmente.
Dignamente. Simplesmente. Patrioticamente. Sei eu e não sou adepta do
Fado/ Futebol/Fátima como explicação de um destino. Não haverá outro
como ele, também sei, mesmo se houve Figos e há Ronaldos mas ele há animas e animas.
Há
bocadinho abri o portão cá de casa e fui sozinha – é sozinho que se
fazem estas coisas – para a rua, com o meu cachecol do Sport Lisboa e
Benfica e deixei-me estar na berma do passeio até Eusébio passar, era o
que deveria fazer neste momento. Identificar a minha pertença ao nosso
clube e agradecer-lhe.
De manhã cedo, na outra casa do Oeste onde
estava, tinha apanhado umas camélias, também não me ocorreu melhor que a
minha flor preferida na hora da despedida. Já estão numa jarra.
IN "PÚBLICO"
07/01/14
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