Ensaio o amor não diz se é para sempre, o filme de Tânia Lamarca
Um presente de Natal
Assisti o mais recente trabalho da cineasta Tânia Lamarca e
amei! Daí a razão de escrever este artigo. No entanto, não vou me
debruçar sobre a biografia da cineasta catarinense, nascida ali do outro
lado da ponte, no bairro de Capoeiras. Também, não vou me estender
enaltecendo a sua inegável trajetória profissional com produção
cinematográfica significativa e respeitada, muito menos as qualidades da
diretora de reconhecido mérito no País que, em 1997, dirigiu seu
primeiro longa-metragem, Buena Sorte, premiado no Festival de Gramado e
no Festival de Miami e, em 2001, encantou o público e a crítica com o
longa infantil Tainá: Uma aventura na Amazônia, filme que recebeu
catorze prêmios, sendo doze internacionais, dos quais dez como o Melhor
Filme ficção. Um percurso de conquistas e de muitas lutas da admirável
mulher produtora, roteirista e diretora catarinense que, nos anos
setenta, deixou a terra natal, Florianópolis, para vencer no eixo
cinematográfico Rio-São Paulo.
Se o Natal já está nas ruas e praças a deslumbrar a vista e a nos
seduzir com seu valor simbólico extraordinário, se as cidades respiram o
clima mágico da época e adentram dezembro de dias luminosos e noites de
verão deliciosas embaladas pela brisa suave que vem do mar, o novo
filme de Tânia Lamarca, Ensaio – o amor não diz se é para sempre, que
fez seu lançamento nacional no último Festival do Rio e que estreou nos
últimos dias de novembro em Florianópolis, Joinville, Porto Alegre, São
Paulo e Curitiba, seguindo para Foz do Iguaçu e Rio de Janeiro na semana
passada, desagua como uma chuva dadivosa e chega apresentando uma arte
cinematográfica de grande qualidade e beleza estética. Sem dúvida, Tânia
Lamarca oferece-nos um belo presente de Natal antecipado.
Começo por adjetivar a Direção de Arte e o Figurino de Óscar Ramos, a
Cenografia de Zeno Petry e Márcia Passos, a linda trilha sonora
composta pelo maestro e pianista André Heller, fotografia belíssima de
MarxVamerlatti enfim, todos os componentes artísticos e técnicos que a
alma sensível da cineasta captou com acuidade do olhar e,
cuidadosamente, espelhados em cada cena, ou no ritmo e sintonia dos
corpos em movimento de dança.
Cabe ressaltar que Tânia Lamarca além da direção, assina a produção e
o roteiro do filme Ensaio – o amor não diz se é para sempre. Seu enredo
narra os bastidores de uma companhia de dança contemporânea que ensaia o
espetáculo “Amores Raros” sobre a saga épica da destemida Anita
Garibaldi (1821-1849) e seu amor por Giuseppe Garibaldi (1807-1882), o
revolucionário italiano que, durante a Revolução Farroupilha, navegou
até Laguna, proclamou a República Catharinense. Ali, à beira mar,
conheceu Ana Maria de Jesus Ribeiro, a Anita Garibaldi – mulher amante e
guerreira, companheira de todas as lutas até morrer aos 28 anos de
idade, na Itália. Uma mulher que, premida entre a tradição e a paixão,
entre o presbitério e o pecado, largou tudo, rompeu com seu pequeno
mundo e seguiu Garibaldi, passando à história como “a heroína de dois
mundos”– a mulher transformou-se num mito, e o mito colocou à sombra a
mulher. O contexto histórico não é pano de fundo para desenvolver o
enredo e sim o “ensaio”. Na verdade, a fascinante trajetória e o amor de
Anita Garibaldi é o conduto do espetáculo de dança Amores Raros.
São personagens centrais da trama: Eva (Anita) e Daniel (Garibaldi)
protagonizados pelos renomados bailarinos brasileiros que fazem sua
estreia como atores de cinema: Lavínia Bizzotto e Bruno Cezario.
Completam o elenco os atores catarinenses Chico Caprario, Antônio Cunha,
Renato Turnes e, em participação especial, a atriz baiana Ingra
Liberato.
Não se enganem achando que este é mais um filme sobre dança, um
musical. Não é. Até poderia, se considerarmos que Santa Catarina realiza
há trinta anos o Festival de Dança de Joinville de referência nacional e
internacional e, hoje, considerado pelo Guinness Book o maior festival
de dança do mundo pelo número de bailarinos participantes. É, sobretudo,
um filme com dança contemporânea, forte e expressiva, na sua
manifestação coloquial, na sua linguagem corporal cênica e dramática que
supera a palavra no diálogo dos personagens, sobressaindo a imagem.
Aqui, mais do que nunca, dançar é vida com toda a transversalidade
possível entre seres humanos e sentimentos que se entrecruzam, não
necessariamente de forma oblíqua.
“Ensaio”, filmado em Florianópolis (ilha de Santa Catarina), na
histórica Laguna e em Buenos Aires (Argentina) em pleno inverno sulista
sob as asas míticas do Vento Sul – Alma de ânsias e de
brados,/consolador companheiro,/sinistro deus forasteiro/d’espaços
ilimitados! – versos de Velho Vento, do poeta maior, o ilhéu Cruz e
Sousa. Esse clima invernal que compõe o cenário paisagístico penetra por
frinchas do coração desnudando os sentimentos e desvendando-os na dança
apaixonante da bailarina Eva e nos conflitos que abraçam os demais
personagens. “O tom, a atmosfera das cenas rodadas nos interiores tinham
que dialogar com a paisagem invernal das dunas, lagoas, mares e
montanhas lá fora, tinham que abraçar a solidão e as idiossincrasias das
personagens”, enfatiza a diretora Tânia Lamarca.
O filme se desenrola em torno de Eva (Lavínia Bizzotto), personagem
focada na sua carreira e na expectativa de dançar a história de Anita
Garibaldi que, por ardil do destino, vive uma tórrida paixão secreta por
Daniel (Bruno Cezario), sedutor bailarino argentino que interpreta o
papel de Garibaldi no espetáculo Amores Raro, colocando em xeque o sonho
profissional, o ápice da carreira por qual tanto buscou com
determinação. Durante os ensaios o casal de bailarinos extravasa na
dança, no vibrante movimento corporal, todo o seu tormento e conflitos
pessoais: Eva, o drama da paixão, o enfrentamento de uma gravidez
indesejada e a difícil decisão do abortar – sonhos e vida, e Daniel, a
inesperada gravidez da parceira que faz emergir a dor de ser uma das
crianças nascidas nos calabouços da ditadura militar argentina. Uma
história que o bailarino esconde de si mesmo, por não saber quem ele é
de fato, que não verbaliza, apenas dança numa entrega absoluta, trazendo
à cena o que o coreógrafo Renato Vieira conceituou como “a
dramaticidade da condição humana”.
O enredo do longa Ensaio – o amor não diz se é para sempre compreende
uma esmerada visão existencialista, das relações interpessoais que
gravitam no mundo circundante em que o arguto olhar de Tânia Lamarca,
uma observadora reflexiva do tecido social, explorou com extrema
sutileza na construção do filme, deixando emergir os dramas secretos e
evocando sentimentos próprios da natureza humana na arquitetura dos
demais personagens integrantes da companhia de dança – produtor,
diretor, bailarinos e camareira.
Na coreografia da “morte de Anita” a performance dos bailarinos Eva
(Lavínia Bizzotto) e Daniel (Bruno Cezario) é simplesmente deslumbrante.
O foco intenso de luz centrado nos bailarinos dançando, enquanto o
restante do cenário permanece nas sombras, numa inspiração da arte
pictórica do italiano Caravaggio (1571-1610) causa impacto, emociona. A
atriz bailarina Lavínia Bizzotto dança impregnada pelas personagens de
Eva e Anita como se uma fosse extensão da outra, ou vice e versa. Dança o
limite da vida das suas personagens, fortemente e suavemente, como uma
deusa, ou melhor, como a musa da dança Terpsícore. Sua dança é mesmo de
tirar o fôlego.
Aplaudo o filme Ensaio de Tânia Lamarca, um mundo transverso que
surpreende na ousadia da proposta que não faz qualquer concessão nem
julgamentos, tão somente deixa fluir o sentir pleno que mantém
hipnotizado o público fascinado com o vocabulário poético expresso na
magia da dança sensual e erótica de Eva/Anita e na trama, que estabelece
uma ponte de intimidade, de cumplicidade entre as duas mulheres amantes
– a bailarina e a heroína – na vivência intensa do amor romântico ou na
sua desconstrução, apontando outras formas de amar.
Afinal, o amor não diz que é para sempre.
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
19/12/13
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