04/12/2013

HENRIQUE RAPOSO

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As heroínas discretas do Irão


O acordo nuclear da semana passada entre Irão e o Ocidente já é uma consequência da acção das heroínas discretas do Irão, as mulheres persas que andam há anos a corroer por dentro o regime dos Ayatollah.


Apesar de exilada na Europa, Marjane Satrapi é talvez o símbolo máximo desta geração de mulheres que atiram pedras ao regime, literal e metaforicamente falado. 'Persépolis', romance autobiográfico em BD, é o mais famoso desses calhaus políticos.  

Através das vinhetas que relatam a sua infância, Marjane Satrapi ilustra os dois momentos fundadores do Irão contemporâneo: a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão com o desenlace da revolução; a família cosmopolita de Satrapi descobre que o fim de um regime autoritário pode gerar algo ainda pior, um regime totalitário. 

As vinhetas da Satrapi-adolescente mostram a resistência de Marjane e da família perante a opressão dos Ayatollah durante os anos 80: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, o primeiro exílio de Marjane (Áustria). No final, já vemos uma Marjane adulta e uma sociedade inteira a resistir às escondidas: os iranianos têm uma persona pública para cumprir os preceitos islamitas e um verdadeiro alter ego privado para cumprir os seus desejos e liberdades. E é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em França. 

Ao longo destas páginas, 'Persépolis' é comovente na forma como convoca três palavras: família, pátria e liberdade. É comovente porque Marjane procura exílio numa cultura europeia que fez tudo para destruir as três palavras em questão. Num dos episódios-chave, Marjane ouve um jovem europeu a declamar a habitual baboseira pós-moderna, "a liberdade é uma mera narrativa, uma falácia". 

Depois de dar um carolo no tal rapaz, Marjane diz qualquer coisa como "os meus pais estão a lutar pela liberdade na terra deles, na minha terra, não sabes do que falas". De facto, não sabe, não sabem. Marjane descobre-se assim em terra de ninguém, entre o fanatismo dos Ayatollah e a morrinha relativista da cultura que a acolheu. Uma pária, lá e cá.   

IN "EXPRESSO"
02/12/13

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