As heroínas discretas do Irão
O acordo nuclear da semana passada entre Irão e o Ocidente já é uma consequência da acção das heroínas discretas do Irão, as mulheres persas que andam há anos a corroer por dentro o regime dos Ayatollah.
Apesar de exilada na Europa, Marjane Satrapi é talvez o símbolo máximo desta geração de mulheres que atiram pedras ao regime, literal
e metaforicamente
falado. 'Persépolis', romance autobiográfico em BD, é o mais famoso desses calhaus políticos.
Através das vinhetas que relatam a sua infância,
Marjane Satrapi ilustra os dois momentos fundadores do Irão
contemporâneo: a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão com o
desenlace da revolução; a família cosmopolita de Satrapi descobre que o
fim de um regime autoritário pode gerar algo ainda pior, um regime
totalitário.
As vinhetas da Satrapi-adolescente mostram a resistência de
Marjane e da família perante a opressão dos Ayatollah durante os anos
80: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio
aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, o
primeiro exílio de Marjane (Áustria). No final, já vemos uma Marjane
adulta e uma sociedade inteira a resistir às escondidas: os iranianos
têm uma persona pública para cumprir os preceitos islamitas e um
verdadeiro alter ego privado para cumprir os seus desejos e liberdades. E
é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em
França.
Ao longo destas páginas, 'Persépolis' é comovente na
forma como convoca três palavras: família, pátria e liberdade. É
comovente porque Marjane procura exílio numa cultura europeia que fez
tudo para destruir as três palavras em questão. Num dos episódios-chave,
Marjane ouve um jovem europeu a declamar a habitual baboseira
pós-moderna, "a liberdade é uma mera narrativa, uma falácia".
Depois de
dar um carolo no tal rapaz, Marjane diz qualquer coisa como "os meus
pais estão a lutar pela liberdade na terra deles, na minha terra, não
sabes do que falas". De facto, não sabe, não sabem. Marjane descobre-se
assim em terra de ninguém, entre o fanatismo dos Ayatollah e a morrinha
relativista da cultura que a acolheu. Uma pária, lá e cá.
IN "EXPRESSO"
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