.
Professora universitária no ISCSP/UTL.
IN "PÚBLICO"
21/10/13
.
Felicidade Pública
A cultura faço-a eu!
“Porque me vestem com roupas emprestadas?”, Macbeth, William Shakespeare (I, iii, 109-110).
A filósofa norte-americana Susan Neiman, no seu livro O Mal no Pensamento Moderno: para uma História Alternativa da Filosofia, descreve o terramoto de Lisboa de 1755 como a razão que levou ao fim do optimismo na cultura ocidental.
Justifica
com o fato do mal – seja natural, como o representado pelo terramoto,
ou o moral, como o corporizado em Auschwitz ou Hiroshima – ameaçar a
razão humana, desafiando assim a nossa esperança de que o mundo faça
sentido. O terramoto foi um evento dramático da nossa história nacional
que deixou, portanto, uma pesada pegada cultural, em nós e no resto do
mundo.
Ao reler esta perspectiva histórica voltei a encarar a
aparente dicotomia paradoxal e ondulante na retórica da nossa cultura,
que parece tão marcadamente nossa: entre o acreditar e o não acreditar
no futuro, entre o optimismo e o pessimismo, entre a vitimização e o
desenrascanço, num “vai-se andando” de existências que não se expõem aos
extremos, e que receiam afirmar-se, assim tricotando a nossa cultura de
hoje.
Como regra, o português não tem a coragem decidida de dizer
que está bem ou muito bem, nem que está totalmente mal, como
confirmamos no estudo que fizemos com o Instituto da Felicidade:
navegamos nas águas não comprometidas dos 50%, do “mais ou menos”, da
desresponsabilização, de uma assumida ausência de compromissos sobre o
que sentimos ou o que esperamos ser. Tentamos passar pela vida
assépticos, sem nos “sujarmos”, receosos, escondidos, sem posições
deliberadas. Defesa da neutralidade? Preferência medrosa por emoções
estéreis? Quem sabe se resquícios e fantasmas de um fascismo que ainda
nos consome a existência coletiva.
Não me comprometo. Ponto.
Prefiro o silêncio à escolha resolvida e demarcada. Elejo a neutralidade
na existência. Nem sim nem não. Não arrisco. O inferno são mesmo os
outros. Aliás... Estas roupas são emprestadas, nem são minhas...
Mas
se a cultura é de facto feita de silêncios – o que decidimos omitir, o
que ignoramos, o que desleixamos, o que descartamos – é também feita de
palavras, que preenchem os nossos espaços relacionais. É igualmente da
qualidade e sofisticação dos nossos discursos privados e públicos que se
faz cada cultura, a qual é executada nas escolhas gramaticais, nas
frases quotidianas, às vezes repetidas ad nausium. Como uma
névoa corrosiva, as palavras e as frases que oferecemos ou impomos, mas
não pensamos, os silêncios que não medimos ou que usamos
intencionalmente para manipular, criam mundos e casulos de que somos
autores, sem nos darmos por donos – porque isso era assumir um risco que
os “mais-ou-menos” da vida repugnam.
Mergulhados na cultura,
deixamos de ver para além dela. O horizonte fixa-se na distância
milimétrica dos nossos olhares míopes. As rotinas ensurdecem-nos.
Habituados ao som, não somos capazes de ouvi-las. Estamos tão dentro das
nossas próprias formas culturais – as quais manufaturamos a cada minuto
– que acabamos exilados delas.
Quer experimentar pensar no que já fez recentemente pela nossa cultura?
Relembre o que já disse hoje.
Que
palavras usou para falar de si, da vida, do futuro, dos colegas, dos
políticos, dos seus amores, dos media, do passado, do que está a ser
este dia?... O que calou, o que preferiu suprimir?
Se calhar já
hoje disse “Vai-se andando...”, ou começou frases por “Não...”, quando a
seguir ia concordar com o que estava em discussão. Ou neste dia em que
falamos já iniciou qualquer tipo de conversas, mesmo sobre o bom da
existência, por expressões como “O problema é...”, mostrando que
acredita, e leva outros a acreditar, que a vida é isso mesmo: uma
sucessão imparável de problemas, sem dar tempo a fôlegos recuperadores,
assim nos impedindo a todos uma vitalidade rejuvenescedora – até mesmo
quando falamos do positivo.
Provavelmente já referiu hoje, com
muito ênfase: “É tudo muito complicado!” e assim espelhou a vida com
perplexidades desanimadoras, que minoraram as oportunidades; como quando
disse a um filho que com esforço atingiu um sucesso: “Não fizeste mais
do que a tua obrigação”.
É possível que já hoje tenha generalizado
as experiências mais desagradáveis (“Nunca estás quieto”; “Este meu
colega é sempre tão agressivo!”; “Não tens jeito nenhum para
matemática”) e desacreditado as boas (“Uhm...Está-me a elogiar? Deve
querer qualquer coisa...Esta palmadinha nas costas traz água no
bico...”). É provável que já hoje tenha falado de alguém “pelas costas”,
mas tenha fugido a ser frontal em algo que precisava dizer-lhe.
Que complexidades gramaticais e emotivas tem a nossa cultura!
Por
um lado não nos comprometemos, pugnando pela flacidez das posições ou
pelo silêncio bem calado; por outro guiamos a vida e a cultura em
direção a micro-apocalipses, enviesando a existência, dissimulando
responsabilidades, consolidando formas cinzentas de viver. Quantas vezes
não mutilamos aspirações com a forma como nos expressamos, ou não nos
desresponsabilizamos porque evitamos emocionar-nos na vida publica?
Quantas vezes também não delimitamos o publico e o privado, separando a
vida como se os afetos fossem algo impossível de coexistir com a
ciência, a política, ou a economia? Porque serão certos sentimentos
aceites e valorizados na esfera privada e julgados irrelevantes ou até
chocantes na esfera publica, convidando-nos a sectarismo artificiais e
ao consequente amorfismo social e cultural?
Uma explicação
possível é a de que a consciência de nós mesmos em contexto, como parte
de um todo, membros vivos de um coletivo, nos tenha sido estripada:
convenceram-nos que aquilo que somos como pessoas em privado em nada se
liga como o que somos como cidadãos; que o que se passa nos nossos
discursos íntimos em nada alimenta uma cultura.
Aliás, como todos aprendemos, o bom profissional deixa em casa as emoções... até porque não se pode mostrar vulnerável...
Numa
economia de mercado, dizem Oskar Negt e Alexander Kluge, a exclusão
sistemática da experiência vivida é critica à sua manutenção e à
vantagem do discurso político.
Defendo por isso que é perigoso para a cultura e para a democracia que continue assim.
Esta
semana vivi na pele e no coração a integração harmoniosa destas
artificiais dicotomias. Em discussões públicas dos trabalhos dos alunos
finalistas do Executive Master em Psicologia Positiva Aplicada a
decorrer no ISCSP da Universidade de Lisboa, fui testemunha de
micro-transformações culturais e novas gramáticas, que uniram o público e
o privado: uma juíza do Ministério Público a descrever um programa da
sua autoria para potenciar o amor perante casos de violência doméstica;
uma técnica de serviço social a apresentar empolgada os resultados
fascinantes de um projeto que fez com mais três colegas para a promoção
da consciência das virtudes e forças pessoais em jovens delinquentes
sobre a alçada da justiça; uma professora portadora de nanismo
acondroplásico a falar de maior bem-estar das pessoas com esta
característica genética face ao comum dos cidadãos, uma historiadora a
descrever o valor de longevidade de pessoas de idade avançada do
interior sul do país que voltam a ter verdadeiro sentido de
comunidade...
Discursos decididamente posicionados, afetivos,
diria mesmo apaixonados, pessoal e profissionalmente mesclados, que
mostram propostas ontológicas e epistemológicas complementares à cultura
vigente, e por isso mesmo, arquitetam cultura.
E não são mudanças soltas nem insignificantes. No seu recente livro Emoções Politicas: Porque é que o Amor é importante para a Justiça,
Martha Nussbaum faz o estudo dos discursos, da retórica e do enquadrar
das Emoções Públicas para dar sentido ao que se passa na esfera coletiva
e na sociedade civil. Crente de que os sentimentos mobilizam certas
trajetórias – politicas, culturais, humanistas – a autora defende a
relevância da promoção das emoções, e neste caso particular do Amor,
como forma de reavivar as múltiplas mortes anunciadas das nossas
existências conjuntas. Sem amor, diz-nos, não há políticas democráticas
bem oleadas nem justiça social. Sim: unir a política e as políticas a
emoções como o amor.
Receio que o amassar da cultura pelas nossas
próprias mãos – tal como, queiramos ou não, fazemos todos os dias – se
continuar a ser feito esterilmente, sem nos comprometermos, e sem
consciência do nosso poder, se arrisque a transformar numa forma de
controlo social e ideológico, poderosa, invisível e acrítica, uma
espécie de autoridade moral, perigosamente e inconscientemente feita por
cada um de nós a cada instante. Seremos assim autores de textos
culturais anónimos: uma espécie de névoa corrosiva que serve de proteção
psicológica, que parece dizer: “Detesto a nossa cultura...mas não me
considero parte dela. São os outros que a fazem”.
Com uma cultura
sonsa, dissimulada e não consciente, lesamos a possibilidade de novas
linguagens e gramáticas de vida, e submergimos o poder da transformação.
Seremos todos colonizadores, mas continuaremos a sentir-nos como
população indígena, maltratados pela cultura, que acreditamos que nos é
externa.
Poderemos continuar a sentir-nos vítimas, claro, mas
creio antes que nos cabe ser expoentes de uma liberdade criativa no
fazer culturas, aquela liberdade que detestam os decisores e burocratas
das certezas. Se estes não forem tempos para sermos irreverentes,
subversivos e criativos, se não for o momento para cultivar emoções
escolhidas e cruzar privado e público, se não for a altura para tomarmos
posições comprometidas, então quando será?
A cultura somos nós.
Comecemos por isso com a dúvida – que Jorge Luis Borges diz ser outro
nome para Inteligência – e reconheçamos o nosso papel na viragem para
outra forma de existir em cultura. Porque a cultura consciente arranca
de nós uma dimensão existencial escondida, uma voz abafada, que temos
que gritar, alto, cada vez mais alto. Precisamos de mais demarcação, de
mais afetos e de mais consciência para tornar a vida coletiva de novo
real, visível e vivível. Devemos isso à história.
Permita-me que lhe pergunte: o que está disposto(a) a gritar em voz bem alta?
Professora universitária no ISCSP/UTL.
IN "PÚBLICO"
21/10/13
.
Sem comentários:
Enviar um comentário