Quarenta horas
São seis da manhã. O despertador toca impiedoso, ignorando ser ainda
noite lá fora. Amélia levanta-se sonolenta e acorda os filhos. Até
chegar ao serviço, tem de os preparar para sair, levá-los às respetivas
escolas, apanhar a camioneta e depois o metro, que a essa hora vai
sempre a abarrotar.
Na repartição de finanças, o relógio de ponto não falha na sua
precisão eletrónica, e cada segundo de atraso é registado com minúcia.
Já sentada no seu posto, Amélia vê desfilarem à sua frente todo o tipo
de pessoas: simpáticas, carrancudas, interrogativas, impacientes,
desesperadas. Na maior parte dos casos, todas se queixam do tempo que
demoram a ser atendidas, da burocracia a que são sujeitas, do roubo que
são os impostos. Amélia até pensa como elas, mas não o pode dizer.
Fecha-se em copas e tenta fazer o que pode, mas nada parece ajudar: o
computador teima em demorar eternidades a abrir os programas de que
necessita, cada folha mandada imprimir é arrancada a ferros da máquina
infernal, os utentes que esperam começam a reclamar em massa… e a hora
de almoço que não chega.
Isto num dia bom, porque há alturas em que lá aparecem aqueles casos
bicudos a que Amélia, por muito que queira, não sabe dar resposta. É
que, à conta da crise, ela não tem tido formação que lhe troque por
miúdos a legislação que está sempre a mudar. Por brio profissional, e
sabendo-se por conta própria, lá vai folheando os manuais em alguns
serões em que os miúdos se deitam mais cedo e ela não adormece em frente
à televisão. Mesmo assim, lá fica de vez em quando encavacada ao
balcão, valendo-lhe a experiência de uma colega mais velha.
É por isso que Amélia sabe que mais uma hora de trabalho por dia não
vai significar mais eficiência. Ela já faz o que pode, atura quem é
mal-educado, socorre o desesperado, explica tudo tim-tim por tim-tim a
quem parece perdido. A partir de agora sairá de casa ainda mais de
madrugada, os filhos terão de ir para a escola ainda mais cedo, ficando
no recreio ao deus-dará. Ficar mais sessenta minutos por dia no serviço
só vai deixá-la mais extenuada, fazê-la ir buscar os filhos já de noite
no inverno, chegar a casa a correr e aproveitar a alta velocidade o
tempo que lhe resta até se deitar: orientar-lhes os tpc, dar-lhes banho,
fazer o jantar, preparar as lancheiras para o dia seguinte, arrumar a
cozinha, ler-lhes uma história, passar a ferro a roupa para o dia
seguinte, lavar roupa, estendê-la… Em dias assim não há espaço para o
lazer, para um pouco de descanso, para retomar a energia que precisa
para continuar. Descansar só mesmo nas poucas horas em que se der ao
luxo de dormir.
Amélia sabe que as quarenta horas que vai passar agora ao balcão não
vão resultar em mais produtividade. Vão deixá-la mais exausta, mais
desmotivada, menos reconhecida no seu emprego. Dessem-lhe mais condições
de trabalho e de vida e ela faria muito mais em muito menos tempo. Nos
últimos anos, Amélia tem trabalhado cada vez mais e tem recebido cada
vez menos. É por isso que vai votar amanhã. É o único momento em que
pode dizer de sua justiça.
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
30/09/13
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