31/07/2013

GUSTAVO CARDOSO

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A razoabilidade 
da mentira

Há factos, há mentiras e há o grau de razoabilidade da mentira. Em todos os acontecimentos que presenciamos ou que nos são relatados há factos e interpretações – logo há espaço para errar, mas também para mentir.

A mentira é a crítica que vezes sem conta uma larga faixa da população faz aos políticos eleitos, mas também às elites com maior poder, sejam aquelas constituídas por gestores ou proprietários, como por exemplo as elites do sector financeiro e as que em Portugal se encontram em contextos de monopólio ou quase monopólio – da transformação da cortiça, aos combustíveis, telecomunicações, distribuição, etc.
Isto é, seja por via das promessas eleitorais proferidas por candidatos, pela via da construção de orçamentos e das políticas que os acompanham, pelas campanhas publicitárias aos seus produtos ou pelas análises da “situação do país” ou sobre “o que se deveria fazer”, proferidos por grandes empresários ou banqueiros portugueses, a maioria das pessoas tem a sensação de que aqueles que proferem essas análises ou desenham essas políticas vivem noutro “universo”, noutras “realidades” e que portanto lhes mentem.

Não pretendo aqui discutir a especificidade das soluções propostas por políticos e gestores, nem se sofrer cura, ou se é importante perder hoje muito para ganhar algo depois, se não há alternativas ou se o que nos dizem é mentira ou verdade, nem se é justo dizer que se mente quando se fala nesses momentos, mas antes colocar uma outra hipótese.

Essa hipótese é a de que uma grande parte dos discursos que as diferentes elites portuguesas produzem hoje e que informam as suas decisões políticas e económicas possam não estar assentes em interpretações racionais dos factos e sim em diferentes graus de crenças.

Crenças essas, que toldam as suas análises e que levam a que precisamente uma grande parte da população os critique e a que as suas soluções tenham deixado de parecer razoavéis para o todo, pois tendem apenas a melhorar a vida de cada vez menos pessoas no conjunto dos cidadãos – menos quer dizer talvez apenas 1% de todos nós.

O que se espera no contexto da prática de negócios ou política é que os actos e o discurso obedeçam a uma certa racionalidade. É precisamente por isso que as pessoas dizem “não há nenhum governante que queira mal ao seu povo”, espera-se que no exercício do poder politico e económico haja racionalidade. Por isso, nos custa tanto acreditar que alguém não possa querer o nosso bem, mas pode-se querer o bem dos outros e viver num contexto de razoabilidade da mentira.

A razão, a capacidade analítica, a liberdade de crítica são alguns dos instrumentos fundamentais para nos proteger da razoabilidade da mentira. A meio caminho entre o facto e a mentira situa-se aquilo que podemos denominar a mentira razoável, que é algo que parece verdade, produto aparente de uma análise racional, até que procuramos analisar os factos em que a mesma, aparentemente, se alicerça.  A razoabilidade da mentira é a razoabilidade que se produz quando na raiz da fundamentação dos nossos actos está a crença em algo e a recusa da sua crítica.

Zygmunt Bauman no livro recentemente publicado pela Polity Press, intitulado Does the Richness of the Few Benefit Us All?, questiona até que ponto grande parte do nosso discurso político e económico não se encontra balizado por mentiras que, por sua vez, produzem o resultado à vista na Europa (incluindo Portugal), nos Estados Unidos e na maioria dos países da OCDE, isto é, o enriquecimento de um pequeno número, implicando a erosão do que era conhecido em muitos países durante as décadas do pós-guerra como “classe média” e uma crescente desigualdade.

Há nesse contexto algumas perguntas incómodas para todos nós mas que necessariamente temos de colocar se queremos inverter a longa marcha em que, quase todos, estamos incluídos, rumo a uma maior desigualdade.

São perguntas simples como: Qual o benefício para a sociedade em ter numa empresa alguém que ganhe 100, 1000 ou 10.000 vezes o salário de outra pessoa na mesma empresa? Qual o benefício de reduzir impostos a empresas e aumentar a indivíduos? Qual o benefício de taxar as casas dos cidadãos e não taxar as casas na posse das empresas financeiras? Qual o sentido de cortar despesas com os cidadãos para obter descidas de juros para as empresas financeiras?

Provavelmente as nossas respostas serão diferentes conforme queiramos partir de uma análise racional ou de uma análise assente em crenças, ou nas palavras de Bauman em presunções comummente aceites como óbvias (não precisando de prova) e, portanto, levando-nos a percorrer o curso da razoabilidade da mentira.

Como elenca Bauman:

– Podemos acreditar que o crescimento económico é a única maneira de lidar com os desafios do nosso tempo e resolver todos os problemas que a coabitação humana gera;
– Que o crescimento perpétuo do consumo ou o acelerar da rotatividade de novos objectos de consumo é a única, principal e mais efectiva forma de atingir a busca de felicidade humana;
– Que a desigualdade social é natural e que o ajustar da nossa vida humana a essa condição nos beneficia a todos, enquanto que tentar alterar os seus pressupostos é algo de negativo;
– Que a rivalidade (na sua dupla face do louvar dos ganhadores e a exclusão/degredo dos perdedores) é a base da justiça, sendo simultâneamente uma necessidade e condição suficiente de justiça social e reprodução da ordem social.
Mas acreditaremos nisso porque julgamos que podemos ter alguma hipótese de escapar dos 99% e ser recebidos de braços abertos entre os 1% que lucram com essas decisões?

Ou porque temos uma crença inabalável em que é mesmo assim, que o mercado (que somos nós todos também) nunca pode errar e, por isso, como o sucesso das medidas é óbvio não necessitam de ser provadas, que basta acreditar?

Ou porque nunca questionámos, mesmo: será que “eles” (seja quem “eles” sejam) realmente sabem o que fazem ou acreditam apenas que estão certos?
Se nos sentirmos bem num mundo onde podemos desprezar a cooperação, o mutualismo, a partilha, a confiança recíproca, o reconhecimento e respeito, então não podemos chamar mentiroso a quem nos oferece precisamente o que pretendemos, um mundo onde a salvação de 1% está garantida e onde o sonho da nossa vida é lá chegar e deixar pelo caminho todos quantos pudermos. Mas muito provavelmente um mundo assim irá rapidamente autodestruir-se pondo fim a esses “sonhos”.

Para lá das ideologias e da sua razoabilidade da mentira há (felizmente) a liberdade e a esperança.


É docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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