Antes palhaço do que equilibrista
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Chegara-se à conversa final e Daniel Sampaio foi o mais entusiasta.
Teresa Ricou, a mulher palhaço, deveria ser a escolhida. D. Manuel
Clemente, ao contrário de António Barreto e Cristina Louro, não a
conhecia bem.
Explicaram então ao bispo e recém-nomeado patriarca de
Lisboa que Tété era mais do que um palhaço – a escola de circo que
fundara, o Chapitô, salvara dezenas de miúdos da marginalidade.
Transformara uma prisão de mulheres, o estabelecimento das Mónicas, num
lugar que oferecia um destino aos condenados pelo peso da enfermidade
social. Para um homem culto como Clemente, a ideia da salvação pela arte
bastou para ficar convencido.
A distinção não era de somenos.
Atribuído pela Gulbenkian, o Prémio Beneficência escolhia anjos na
terra, figuras que pelo seu esforço e convicção se sacrificavam pelos
outros e pelo bem comum. Numa época de ferozes e absurdos egoísmos
tratava-se mais de um sinal da fundação do que de um prémio. Os júris
levaram a sério a premissa.
Anunciada a vencedora, Teresa Ricou
deu uma longa entrevista de vida. Notável vida, acrescentaria. Contou
das burguesas origens, do passado africano, dos trabalhos, amigos e da
vida circense. Regressou a Portugal, logo após o 25 de Abril, e aqui
trabalhou com o palhaço Luciano, o chefe dos Faz-Tudo no Coliseu dos
Recreios, artista aliás de quem muito se falava em casa da minha família
paterna. Tété contracenaria também com Mariano Franco, mestre do
sapateado, e abriu o coração de António Reis, sensível a questões
artísticas e injustiças, no sentido de transformar o artista do circo
num profissional reconhecido pela lei orgânica e, claro, pela secretaria
de Estado da Cultura. Reis era secretário de Estado e Teresa
confundia-se com a mulher palhaço, rosadinha e a falar à moda da
província, a primeira de que havia memória em Portugal.
«É
preciso iluminar os olhos das pessoas e as pessoas estão a perder o seu
brilho, os palhaços fazem-no», confessou nessa ou noutra entrevista
qualquer. E mais, quando alguém quis saber se palhaço não era uma
profissão de menos para uma mulher tão prodigiosamente activa, cortou a
conversa pela raiz: «Palhaço foi sempre o que quis ser. Porque os
palhaços, quando são verdadeiramente bons, são generosos subversivos».
Evidentemente,
o problema não estava, nem podia estar, nestas afirmações gerais e
idealistas acerca da nobre profissão de palhaço. Se fossem apenas estas
pérolas, D. Manuel Clemente não teria telefonado a, pelo menos, um
colega do júri... Também não o faria se o jornal tivesse colocado a sua
sem dúvida inefável vida íntima, no meio das outras respostas e sem
qualquer destaque. Mas não. A frase bombástica lá estava e fazia a capa
da revista: «Fui conhecida como a melhor cama de Lisboa. Desse ponto de
vista já estou de barriga cheia».
Clemente teve de se conformar.
Talvez na conferência episcopal algum bispo mais venenoso, ou
deliciosamente humano, possa ter tocado no assunto, talvez até o futuro
cardeal tenha, no fundo dos fundos, achado alguma piada, mas tal não
pareceu ao colega do júri que recebeu a sua chamada. Mesmo para um bispo
que está do lado dos progressistas do Concílio Vaticano II, os anjos
não podem deixar de ser o que sempre foram: irremediáveis assexuados.
Uma
grande palhaça. Com quem estive uma ou outra vez, uma força da
natureza. Disse-me só ter medo de lagartixas, cobras e do reptilário do
Jardim Zoológico, de resto eles que viessem. De facto, assim se provava
que nem a mais original das criaturas conseguia ser original em tudo. No
resto, Tété é um rolo compressor de surpresas, inovação e criatividade.
E mesmo sem a sua confessada especialidade em actividades lúdicas entre
quatro paredes e colchões, partiria à mesma com a barriga cheia.
Andou
num colégio de freiras, ‘enlouqueceu’ positivamente ao ver Jean Seberg a
vender jornais no Acossado, de Godard. Seduzida de tal maneira que não
descansou enquanto não fez o mesmo em Paris – é engraçado como esta
história me faz lembrar o breve romance dos meus pais na cidade-luz e a
confissão de minha mãe de que numa noite, cheios de fome e sem dinheiro,
não tiveram outro remédio se não ‘assaltar’ um supermercado. Com
inegável talento, de que me orgulho, guardou um frango assado dentro da
gabardine.
O que posso dizer mais? Que trabalhou para um
laboratório a colocar etiquetas em medicamentos, que serviu em
restaurantes, lojas e na TAP, onde vestiria a farda de hospedeira. E
que, tão importante como tudo isso, era a segunda filha de Eduardo
Ricou, médico especializado em leprosos, um homem de bem. Ele, de origem
suíça, e a mãe, Alda, brasileira com sangue italiano, escolheram África
para, palmo a palmo, encontrarem e tratarem os que precisavam de ser
encontrados e tratados. Leprosos que sempre fizeram parte da infância e
juventude de Tété. Dançava descalça na terra batida e nunca o pai a
proibiu de estar com os doentes. Pessoas como ela, dizia-lhe.
Hoje
é menos mulher palhaço e mais empreendedora. O Chapitô, talvez o melhor
lugar para jantar em Lisboa, é hoje um grande projecto artístico e de
beneficência. Todos os anos lectivos entram novas crianças em risco de
se perderem, jovens marcados pelo destino que trata com o mesmo espírito
que o pai cuidava dos seus leprosos, encontra-os e abre-lhes os olhos
para o mundo do circo, a arte que aprendeu a amar.
Alguns querem
aprender a ser equilibristas. Certamente que não os demove nem lhes
trava a liberdade de escolha, imagino porém que lhes pergunte se não
desejam a melhor de todas as profissões. Como a compreendo. Também eu
lhe(s) perguntaria: para que queres ser equilibrista toda a vida se
podes ser reconhecido como um verdadeiro palhaço?
04/06/13
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