De Tahrir a Taksim
O
Verão da Praça Taksim, em Istambul, prolonga agora a Primavera da Praça
Tahrir, no Cairo. Em Tahrir como em Tunes ou nas ruas e praças de
outros países árabes, a revolta iniciada há um ano e meio teve uma
agenda muito diversa. Quem lutou pela identidade misturou-se com quem
lutou pela modernização. Quem lutou contra a repressão e contra a
negação das liberdades civis elementares misturou-se com quem lutou
contra o contraste chocante entre, de um lado, o empobrecimento do povo e
a condenação de uma juventude escolarizada a um beco sem saída e, do
outro, o súbito enriquecimento de uma classe de boys favorecidos pelas
vagas de privatização e pela confiança dos estrategas da viragem
neoliberal das economias desses Estados. Tahrir foi essa babilónia de
todas as lutas.
O Verão ansiado nessas Primaveras revelou-se
dececionante. Nos poucos sítios em que as revoltas cidadãs vingaram, o
espaço das liberdades e da democracia ficou estreito, ao mesmo tempo que
o espaço da formatação neoliberal das suas economias se ampliou
exponencialmente. Há nisto uma trágica ironia: para benefício dos seus
clãs de fiéis, os ditadores haviam resistido à liberalização económica e
ao choque social que ela traria e foram os novos regimes que abriram
portas às "reformas estruturais" e ao seu habitual cortejo de punições
sociais: choque fiscal, privatizações plenas ou em parceria, predação
empresarial por capital estrangeiro, sem que a anterior pobreza da
maioria e a falta de horizontes dos jovens escolarizados mude de rumo.
Ao
advento entusiástico desse Verão que não veio sucedeu afinal um Outono
frio. Na Arábia Saudita, no Iémen, na Jordânia, em Marrocos, no Bahrein
prevaleceu o congelamento da pressão popular, a mando das agendas
geopolíticas e económicas dominantes. Na Líbia, e depois na Síria, a
militarização afogou a revolução e retribalizou ambas as sociedades. Os
interessados - sobretudo externos - na estabilidade do statu quo
triunfaram. Os pobres, as mulheres, os jovens, toda a inquietação que
veio à rua reclamar liberdade e igualdade viram cerrar-se a janela que
entreabriram. E as mãos que a cerraram foram as mãos ricas e cuidadas
dos poderes de sempre.
O que hoje se joga na Turquia é o reabrir
dessa janela cerrada. Nos últimos dez anos, a ambivalência do "modelo
turco" - em que a crítica cultural do Ocidente e a rejeição de um
nacionalismo fechado em favor de um horizonte neo-otomano vai de mãos
dadas com uma estratégia industrial de substituição de importações
alimentada por uma agressiva elite empresarial apoiada por capital
saudita (os "tigres da Anatólia") - sofreu uma clara inflexão no sentido
de reforçar o uso do Islão como policiador moral da disciplina
neoliberal da economia. Como observou Kees van der Pijl, "o lento
ressurgimento do Islão político dá-lhe hoje um papel comparável ao da
Democracia Cristã na Europa Ocidental pós-1945, que serviu também para
facilitar o desenvolvimento capitalista através de uma estética política
de compensação desenvolvida fundamentalmente contra a esquerda laica."
Ora, o que o levantamento popular em Taksim vem mostrar é que juntar
repressão comportamental às tensões sociais geradas pelas "reformas
estruturais" caras ao cânone liberalizador é pôr gasolina na fogueira.
Na
Praça Tahrir como na Praça Taksim, a liberdade e a justiça são um só
problema e só se resolvem juntas. Com mais democracia e nunca com menos.
Na Praça Syntagma, em Atenas, também. É por isso que é terrível que à
Primavera do Cairo e ao Verão de Istambul a Europa aceite que se
responda no seu seio com um Inverno de silêncio.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/06/13
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