Egocentrismos
Os egocêntricos são mesmo assim: intragáveis
Noite escura sem viva alma. Um homem para o carro
novo e sai apressado rumo a uma farmácia. Olha em todas as direções e
segue até desaparecer de vista. Um transeunte solitário, aproveitando a
oportunidade, introduz-se na viatura mal estacionada e arranca sem olhar
para trás. O outro regressa e dá pelo furto. Traz consigo um saco que
não tinha antes. Olha para um lado, para outro, hesita, corre, volta
atrás... Nota-se-lhe o desespero perante a constatação de que fora
assaltado. Subitamente, surge outro assaltante que, tirando partido da
atrapalhação da vítima, deita mão ao saco que esta carrega e põe-se em
fuga. É o cúmulo dos cúmulos!
Um furto e um roubo em menos de 15 minutos
são demasiado azar para um homem só, ainda mais se for numa noite
escura sem viva alma. A vítima apresenta de imediato queixa na polícia
sobre o sucedido e, para pasmo do jornalista que o quis entrevistar,
confessa que o duplo assalto de que foi alvo fora, por sua vez,
resultado de outros dois que ele próprio perpetrara antes. O furto do
carro no dia anterior; o roubo do dinheiro, que estava dentro do tal
saco, há poucas horas, enquanto deixara o carro à frente da farmácia,
local do seu crime. O jornalista parece não compreender a revolta do
assaltante queixoso. Afinal, ele também era um ladrão e, lá diz a
sabedoria popular, ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão. O
entrevistado, no entanto, não pensava assim. O carro e o dinheiro
pertenciam-lhe porque eram fruto do seu "trabalho", dizia ele. E ponto
final. Não havia quem o convencesse do contrário e, por causa disso, foi
preso no mesmo instante em que participava a queixa ou não estivesse no
mesmo posto de polícia o proprietário da farmácia assaltada,
apresentando, também ele, queixa, desta feita contra o indignado larápio
azarado.
O vídeo do episódio, que supostamente foi captado por uma câmara de
segurança em São Paulo, circula desde o final do ano passado no youtube,
onde já conta com cerca de um milhão de visualizações e um sem número
de comentários. Alguns acreditam que o caso é real, outros asseguram que
é mera ficção, todos, sem exceção, têm algo a dizer sobre o caricato da
situação que, para a maioria dos brasileiros, ilustra o grau de
violência que se instaurou na cidade paulista. Eu, por mim, e se calhar
por não viver ainda no meio da violência, confesso que o instantâneo,
seja verdadeiro, seja falso, se me assemelhou a uma espécie de parábola
acerca da estupidez humana. E digo estupidez porque, para mim, não há
maior estupidez do que aquela que nos impede de olhar para além do nosso
umbigo e nos faz incapazes de perceber que não somos o centro do mundo.
O ladrão, tão convencido estava da sua verdade, que não hesitou em
apresentar queixa à polícia, julgando-se lesado e exigindo a justiça de
que antes privara as suas vítimas. Melhor exemplo de egocentrismo não
há, acho eu.
Não sou mulher de moralismos ocos, longe disso, nem de dar lições de
moral a ninguém. Mas é um facto que há histórias que obrigam a nos
demorarmos nelas por simbolizarem, genialmente, o que muitas vezes é
difícil de verbalizar de forma objetiva. Há muito tempo, talvez há tempo
de mais, venho dando conta da estupidez humana que grassa por aí e que
se corporiza no egocentrismo de muita gente que se acha o máximo e que, à
conta disso, é incapaz de ouvir o que os outros têm para dizer. É claro
que, embora o mal seja de todo o lado, aqui, na Madeira, se evidencia
mais, pois estamos numa terra pequena, onde a maledicência e a rudeza de
trato são, infelizmente, prática habitual. As discussões de ideias não
existem, porque, assim que alguém se lembra de defender uma posição
diferente do que se considera assente, cai o Carmo e a Trindade e é o
Deus nos acuda. Ou vamos na onda em que os egocêntricos vão ou estamos
lixados. E o pior é que, quem não gosta de confusões nem de brejeirice,
não tem outra solução senão a de se remeter ao silêncio numa sensatez
que é interpretada pelos tais que sabem tudo como um sinal de derrota e
de reconhecimento de que eles têm sempre razão. Os egocêntricos são
mesmo assim: intragáveis.
Afirmam-se detentores da verdade e, fazendo
jus à evidência de ser a ignorância atrevida, dizem disparates
infundados, envergonhando quem até sabe o que diz. São maus, porque,
centrados nos seus umbigos, são insensíveis às razões dos outros, não
hesitando em deitar mão ao insulto na falta de argumento melhor. São
mestres da manipulação e da distorção dos factos, tudo em proveito
próprio ou, se preferirmos, em proveito de uma verdade, a deles, que não
admite contestação nem alternativa.
De volta ao vídeo do youtube, é óbvio que se tratou de uma divertida
peça de ficção.
Se dúvidas houvesse do contrário, bastaria atentar no
seu desfecho, bem ao jeito dos contos de encantar, em que egocêntrico
ladrão tem o castigo que merece. Na vida real já não é assim. O bem está
longe de vencer o mal. Falta-lhe, diga-se em abono da verdade, a
descomunal dose de pachorra que é necessária para convencer, se tal é
sequer possível, um egocêntrico de que o mundo está feito à medida de
todas as opiniões. A sua, por muito que lhe custe, é só mais uma.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
16/01/13
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