Resistência e coacção
Casos recentes e já julgados, ocorridos nas manifestações de
15 de setembro – em geral pacíficas e sem apelos à violência –,
justificam uma análise dos elementos do crime de "resistência e coação
sobre funcionário", à luz da jurisprudência dos tribunais portugueses. O
crime é punível com prisão até cinco anos, nos termos do artigo 347º do
Código Penal.
Esta conduta é tipificada como crime contra o Estado
de Direito e a incriminação pretende proteger o valor da autoridade
pública – quando esta, claro está, age a coberto da lei e sem extravasar
as suas competências. Segundo a jurisprudência dominante, o bem ou
interesse protegido só coincide circunstancialmente com a pessoa do
próprio funcionário.
Isso significa que a
gravidade da ofensa no plano físico é pouco relevante, até porque o
agente pode ser punido em concurso por um (outro) crime contra a pessoa
do funcionário. No crime contra o Estado, o que releva é a atividade
deliberada tendente a impedir, pela violência, o funcionário de exercer
as suas funções, mesmo que não seja bem-sucedida.
Neste
sentido, está em causa um crime contra a autoridade pública e não
contra os funcionários. Os crimes contra funcionários (homicídios,
ofensas corporais, ameaças e coações) podem ser agravados devido às
funções da vítima, destinam-se à proteção da pessoa do funcionário e a
sua consumação requer uma ofensa idêntica à que se exige nos restantes
casos.
Esta perspetiva tem duas consequências de
sentido contrário: no crime contra o Estado, há menor exigência quanto à
violência contra o funcionário, mas maior rigor quanto ao modo de
exercício da autoridade e à ilegitimidade da resistência que lhe é
oposta. A resistência e a coação têm merecimento penal em face de um
correto exercício da autoridade.
No contexto das
manifestações cívicas, a relação entre cidadãos e autoridade pública tem
de tomar em consideração práticas toleradas, em face do seu significado
político, que não o seriam noutro contexto. É o caso dos insultos
inscritos em cartazes e também de uma certa indisciplina ou rebeldia,
que não é configurada como resistência ou coação violentas.
Já
houve tribunais alemães que sustentaram que a mera "resistência
passiva", por exemplo, seria coação. Porém, essa doutrina é estranha aos
quadros culturais portugueses, incompatível com a descrição legal do
crime e ignorada pela nossa jurisprudência. Se qualquer protesto cívico
pudesse ser configurado como um crime, estaria em causa a própria
democracia.
Professora Catedrática de Direito Penal
IN "CORREIO DA MANHÃ"
23/09/12
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