Cegos
"Talvez se pudesse comprar um pequeno país remoto" - esta a forma encontrada pelos alunos da Universidade da Carolina do Sul para resolver as dificuldades da ciência política na simulação das consequências de várias alternativas políticas e, assim, poder ombrear com a matemática, a física ou a química no estatuto de ciência exacta. No essencial, o chiste poder-se-ia aplicar à ciência económica, uma ciência social, por definição, mas que muitos não desistiram de tentar incluir no naipe das ciências exactas. Para os oficiantes desta crença, instalados em organizações como o FMI e o BCE, os resgates da Grécia, Irlanda e Portugal são uma oportunidade única de terem um laboratório de ensaios de modelos de política ou economia. Talvez mais cara, mas menos descarada, do que a compra, pura e simples, de um país.
No ambiente asséptico dos gabinetes, milhares de estudos são, todos os anos, desenvolvidos. Simula-se a realidade, com recurso a técnicas matemáticas sofisticadas e hipótese variadas. Há quem se atreva a incluir dados reais nesses ensaios e a tentar, dessa forma, perceber o que se passou para daí retirar lições para o futuro. Para os mais ortodoxos a conclusão é unânime: quando o Mundo não confirma o que os modelos previam, o problema está na realidade que não colabora e se afasta dos pressupostos estabelecidos. Se ela fosse bem comportada, preenchendo os requisitos previstos, tudo funcionaria sobre rodas.
Uma parte das dificuldades da ciência económica resulta de a esta ortodoxia se opor uma outra, de sinal oposto, que recusa toda a formalização, com o pretexto de que se trata de uma ciência social e de que pessoas e empresas não se podem representar, nem resumir, a funções matemáticas. Não obstante, comungam da mesma tentação de idealizar uma realidade inexistente e deliciam-se em contrapor à sofisticação matemática composições de alto recorte literário e igual vacuidade prática. Ambos constroem, em pólos e por vias antagónicas, amanhãs que cantam.
A semana finda deu-nos uma boa expressão dessa deriva. Confrontados com o elevado nível de desemprego, acima do que os seus modelos haviam previsto, os elementos da troika olharam para a realidade, tal como ela lhes é apresentada nos computadores e pelos sábios do seu círculo próximo, e descortinaram uma desconformidade: o mercado de trabalho ainda não é suficientemente flexível. Para o ser, não devia haver sindicatos, salário mínimo e toda uma tralha legislativa e institucional que não há como modelizar e que, portanto, não devia existir. Pouco importa que os salários reais estejam em queda acentuada e que os trabalhadores portugueses levem a moderação e flexibilidade salarial ao ponto de irem trabalhar sem receber (alguém lhes terá tentado explicar o que são salários em atraso?). Pouco importa que o próprio processo de ajuda tenha afectado a credibilidade internacional das empresas, forçadas a pagar a pronto as matérias-primas de que carecem e para o que não conseguem obter financiamento no sistema bancário. Pouco importa que o Governo continue sem saldar as dívidas das empresas de transporte à Banca, drenando-a de recursos que seriam preciosos no apoio às empresas, nomeadamente as exportadoras. Como não importa que algumas empresas estejam já à porta da falência (às vezes só evitada pelos salários em atraso) por o Estado, por pressão da troika, continuar a não pagar, por exemplo, às empresas fornecedoras do sistema nacional de saúde. O que importa é flexibilizar o mercado de trabalho. É isso que dizem os modelos.
Pois bem, com modelos ou sem eles, permito-me antecipar o seguinte: a não haver uma mudança radical que permita às empresas acesso mais fácil, e em melhores condições, a crédito para funcionamento de curto prazo, o fim do Verão vai ser tormentoso, com o aumento de falências, a retracção do ritmo de evolução das exportações, a escalada do desemprego e a dificuldade em cumprir as metas do acordo. Por mais flexível que seja o mercado de trabalho. A ortodoxia cega.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
12/06/12
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