01/04/2012

MANUEL MARIA CARRILHO





 O direito de inventário 

Ficar refém do passado é sempre uma imprudência. Sobretudo quando não se conhece bem esse passado. Em política, esta imprudência pode tornar-se numa temeridade. 

Penso muitas vezes na lição de coragem, de lucidez e de patriotismo que Lionel Jospin deu em 1995. Perante a controversa herança política de François Mittérand, reclamou o direito de inventário. Tratava-se, como ele então disse, de uma exigência da razão, do espírito crítico e do sentido do futuro. Mas tratava-se, também, da única forma de reconciliar o Partido Socialista francês com os franceses. 

Passou-se isto num memorável comício na Porte de Vincennes, em Paris, em Abril de 1995. Um ano antes, no Congresso de Lièvin, Lionel Jospin tinha ficado a falar quase sozinho. Mas o novo ciclo que verdadeiramente arrancou naquele comício levou o PS a um resultado histórico nas presidenciais, e à vitória nas legislativas de 1997, tornando Jospin primeiro-ministro de França. 

Este episódio, como muitos outros semelhantes que é fácil encontrar na história política europeia das últimas décadas, devia fazer pensar os responsáveis e os militantes do PS português. Nomeadamente aqueles que, como Francisco Assis, insistem no enorme equívoco de afirmar que é mais importante que a nova liderança do PS se reconcilie com o passado recente do partido, do que com a generalidade dos portugueses. 

 Porque se trata de um equívoco grave. De um equívoco de seita, impróprio para um partido político maduro, plural e patriótico. De resto, só à luz da falta de pluralismo e de debate interno dos últimos anos é que este tipo de "reconciliação interna" (na verdade, mais uma mordaça) pode parecer a alguns a coisa mais natural do mundo. 

 Mas que tipo de reconciliação pretendem? Um prolongamento do Congresso do Unanimismo, em Matosinhos? Já nessa altura, em 2010, Mário Soares (que teve na avaliação do socratismo um dos momentos menos inspirados da sua brilhante carreira política) alertou para o perigo desse unanimismo tão acéfalo como calculista, e para as suas pesadas consequências a prazo. 

A estrondosa derrota nas legislativas impôs uma renovação na liderança do PS, e com essa renovação veio a oportunidade de começar um novo ciclo. Estes processos têm sempre dificuldades inerentes, é certo, mas a julgar pela agudização das tensões internas dos últimos tempos, é de temer que esta oportunidade esteja a perder--se. Os próximos meses o dirão. 

Sabe-se que o Partido Socialista gosta (ao contrário do PSD, por exemplo) de transições suaves, sem tensões, enquistamentos ou conflitos. Essa preferência deve-se certamente, em boa parte, à prática do debate aberto e ao culto dos valores do pluralismo, com que historicamente o PS sempre se identificou. 

Com o socialismo "moderno" as coisas mudaram: o autoritarismo substituiu frequentemente o pluralismo, e os casos substituíram - vezes demais - as causas. Ao longo de seis anos de governo uninominal, o PS foi sendo transformado numa "tropa de choque", que tinha por única missão a dogmática defesa do seu líder. 

 António José Seguro seguiu a linha tradicional na história do PS: a de uma renovação federadora, sem ressentimentos, prudente mas assumida. Mas é hoje de uma evidência cristalina que ele recebeu uma herança duplamente envenenada: por um lado, pelo comportamento entrincheirado da "guarda pretoriana" que o anterior secretário-geral deixou no Parlamento (e não só). E, por outro lado, pela torrente de casos que continuamente atingem o partido, que está efetivamente refém de uma herança que não avaliou nem bem nem a tempo, e que cada dia se revela mais devastadora e lúgubre. 

O socratismo agita-se, agora, com a desesperada lucidez dos náufragos que, como se sabe, se arriscam a levar tudo para o fundo, até os que os querem salvar. Se o Partido Socialista não exercer responsavelmente o seu direito de inventário, corre o sério risco de vir a ser soterrado numa avalanche de casos, que o paralisarão durante anos e anos. Que o podem mesmo destruir. Daí a singular importância da lição política de Lionel Jospin, a lembrar que não há futuro quando se fica refém do passado. 

É esta evidência política que torna indispensável um exercício, tão desapaixonado como exigente, do direito de inventário, que viabilize uma análise honesta do que correu bem e do que correu mal, numa perspectiva patriótica que contribua para alargar os horizontes ao Partido Socialista e dar futuro ao País. 


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
 29/03/12 

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