31/01/2012

CARLA HILÁRIO QUEVEDO


Cinco Sentidos


Para a opinião pública, urinar para cima de cadáveres é coisa de bárbaros. Sobre os talibãs nada têm a dizer.

Para todos

Há cerca de um ano, Hollywood arrancava os cabelos porque Ricky Gervais fazia uma apresentação considerada insultuosa a um público de profissionais do entretenimento. O público anónimo não partilhou da opinião dos ofendidos e exigiu o regresso do anfitrião. Em parte por causa das expectativas criadas, e apesar das tentativas de chocar com a piada brejeira a Jodie Foster (The Beaver é o título do filme que realizou e uma das palavras que se presta à confusão), e de ter dito a asneira começada por efe, temida na televisão americana, Ricky Gervais não me animou. Parecia domesticado. Gostei mais da reivindicação hispânica de Antonio Banderas, a recitar Calderón de la Barca, na companhia da mexicana Salma Hayek, do agradecimento divertido do Golden Globe para Modern Family, por Sofia Vergara, em castelhano, indicada no Twitter como a apresentadora certa para os Golden Globes de 2013, e da apresentação cantada do casal Felicity Huffman e William H. Macy. O momento de vulgaridade sem piada da noite acabaria por pertencer a George Clooney, com um comentário ao tamanho do pénis de Michael Fassbender. Havia espaço para Gervais. Mas ele não estava para ali virado.

Só disfuncional

Era uma vez um leão chamado Malik que vivia no jardim zoológico de Wellington, na Nova Zelândia. Tinha na sua jaula uma barreira de vidro com a espessura de 33 milímetros que o separava das visitas. Toda a gente sabia que Malik comia carne humana e não era por isso que era menos amado. Um dia apareceu Sophia Walker, de três anos, que pôs as mãos no vidro e ficou ali muito perto, a olhar para um bicho que lhe parecia mesmo um gato gigante. O pai achou logo graça e fez o que já é tradição: filmou tudo para descarregar de imediato numa rede social. A mãe incentivou. O momento alto aconteceu quando Malik começou às patadas no vidro. Para espanto dos pais, Sophia ali ficou, impávida, sem fugir nem chorar. Para espanto dos que não confiam em barreiras de vidro com leões do lado de lá, os pais continuaram a filmar como se nada fosse. Ninguém mostrou ter o mínimo instinto de protecção. Uma falha no vidro e teriam sido o café com leite de Malik, a começar pela Sophia. O mundo tratou a criança como se fosse uma heroína. A própria, na televisão, repetiu sobre si própria o elogio que lhe dedicaram: «Sou muito corajosa». Aconselho uma ida ao psicólogo.

Não me trates por senadora

O programa Contracorrente da SIC Notícias é um exemplo de como se pode matar o espectador de tédio. Ana Lourenço bem apresentou os seus cinco convidados como «senadores», mas talvez por me ter fixado na senectude, não percebi o que quis dizer com aquilo. Talvez seja parecido com aquele ‘Beatrice’ por que o meu marido às vezes me trata. É um exagero carinhoso; falso, mas querido. É também um pedido de simpatia da parte da jornalista: ‘Vejam bem as super-estrelas que vos trago’ ou ‘Que sorte têm de estar agora a ver a SIC Notícias’. Nos bastidores da palavra ‘senadores’ há um apelo desesperado a que o espectador, por favor, não mude de canal. É um marketing curioso porque se baseia na ingenuidade autêntica. Ana Lourenço acredita no que diz e quer que partilhemos da sua alegria. O pior é o resto. Entre as lamúrias franciscanas de não poder despedir os molengas à-vontade e a ambiguidade sussurrada de António Barreto, temos Manuela Ferreira Leite a exigir benevolência na interpretação das suas palavras. Por muita razão que tenha – e se a teve há três anos! – não convence. Não é por acaso que os senadores antigos davam tanta importância à retórica.

A vida não tem preço

Segundo os investigadores Christopher Costello e Steven Gaines, da Escola Bren de Ciência e Gestão Ambiental da Universidade da Califórnia, um sistema de quotas para licenciar a caça da baleia aboliria esta prática sanguinária e acabaria com o perigo de extinção da espécie. A equação é simples. As quotas de caça seriam limitadas. Os países contra a captura e morte destes cetáceos, como a Austrália, a Nova Zelândia e outros, também iam poder comprar quotas, reduzindo assim o número existente de licenças de caça. Outros países menos convictos na conservação das baleias comprariam licenças para as voltar a vender aos mais convictos, fossem eles países conservacionistas ou obsessivos com a caça da baleia, como é o Japão. O preço aumentaria até ser incomportável e as margens de lucro com o negócio equivaleriam a zero. Havia de chegar o dia em que um quilo de baleia custasse tanto como um quilo de beluga. A ideia é brilhante. Só exige uma fiscalização eficaz do processo. Se funcionasse com as baleias, tentávamos o mesmo com touros, rinocerontes, tigres de Bengala e qualquer bicho em vias de extinção. O mercado, quando é regulado, refreia os piores instintos.

Tudo menos isso

Da guerra, a minha geração só conhece números: milhões de mortos, feridos, desaparecidos em combate. Mas os números não nos dão sequer a vaga ideia do horror vivido. Dizem que há regras. A mais célebre é a Convenção de Genebra. Mas há outras mais modernizadas, que proíbem o uso de certas armas. É uma ideia absurda e hipócrita. Morrer despedaçado por uma bomba ‘autorizada’ é menos grave do que ser estropiado por uma bomba de fragmentação? É neste contexto que aparecem os talibãs indignados por causa de uns soldados americanos que urinaram para cima de outros talibãs mortos com armas ‘aprovadas’. Sim, aqueles que convencem os bombistas suicidas de que a recompensa por se fazerem explodir é o paraíso. Para a opinião pública, que não poupou críticas à conduta selvagem dos americanos, urinar para cima de cadáveres é coisa de bárbaros. Sobre os talibãs, nada têm a dizer. O Presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, aproveitou para pedir explicações. As autoridades militares americanas declararam que vão investigar o acto e dizem que não está de acordo com a conduta das suas Forças Armadas. Desculpem, mas isto não é tudo um disparate pegado?



IN "SOL"
24/01/12

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