Em Belém da Judeia
Estava nevoeiro em Lisboa, cerrado e frio. Numa rotunda mal pronta, onde sinais de perigo alertam os automobilistas para uma tampa de esgoto que foi levantada nas últimas chuvas e que a crise ainda não permitiu arranjar, um pan card com um presépio pintado diz assim; «Nós estamos cá para vos acolher».
Achei ternurento. Não sei porquê, mas achei.
Fugidos ao nevoeiro, caminhámos para Norte.
A voz do conferencista começou a interpelar a última imagem enevoada que me ficara de Lisboa.
As nossas cabeças estão muito mal arrumadas, e quem as arrumou utilizou critérios maniqueístas para organizar o trabalho.
Ensinaram-nos que Jesus de Nazaré nasceu num estábulo, porque em Belém ninguém quis acolher José e Maria.
Eram os maus! Ensinaram às nossas cabeças infantis e acríticas, durante muitos anos, que aos maus se opunham os bons e que nós pertencíamos sempre ao grupo dos bons.
Não, não havia maldade em Belém da Judeia – havia era um povo com uma religião que impunha aos homens cerca de seiscentas normas para lhes condicionar a vida.
Uma delas tinha a ver com os nascimentos. Casa onde nascesse um varão ficava interdita a estranhos durante trinta dias. Mas se o nascituro fosse do sexo feminino, a interdição seria de sessenta dias.
Em época alta, como era o caso do census convocado por Herodes para cuja participação estava obrigada toda a população de Israel, nenhuma hospedaria se atrevia a afrontar a lei. A dita Lei de Deus.
Este mito do Natal, no qual os maus não acolheram alguém no período mais crítico da sua vida, acompanha a história dos homens antes e depois de Cristo.
Foi em nome de normas religiosas, muitas vezes ridículas – se não tivessem consequências trágicas –, que nos guerreámos desde que há notícia de humanos sobre a Terra.
De novo a voz do conferencista a despertar a minha capacidade de olhar criticamente as coisas:
– Deus chega à História dentro dos nossos possíveis. Deus chega à História para alargar os nossos possíveis.
Estas palavras desmontam as concepções maniqueístas de todas as religiões!
Um Deus que não se vinga, que não determina, que não proíbe, mas que desafia assertivamente a uma revolução nas nossas cabeças, nas nossas formas de estar e de ser.
Um Deus que parece dizer-nos que o indivíduo se torna pessoa na relação. Relação com os outros seus semelhantes, e depois – só depois – com Ele.
Parece começar a desenhar-se a Revolução dos Pacíficos.
Parece ser este o tempo de ‘matar’ os homens e as mulheres de todas as religiões – para deixar que os homens e as mulheres de Fé possam ajudar a mudar o estado a que isto chegou.
O apelo deste Natal para mim, neste ano de todas as desgraças de 2011, é a interpelação que nos foi lançada, lá, a seiscentos metros de altitude:
– Só gero vida quando sou capaz de ir para além de mim. Só gero vida quando sou agente de relação que conduz à mudança. Só gero vida quando sou capaz de dizer simplesmente ao parceiro de trabalho, ao vizinho do autocarro, ao desconhecido do supermercado, ao menino que está no berço no meu quarto, ou ao homem que partilha a minha cama: gosto de ti. Só gero vida quando chegar mais longe e for capaz de dizer em verdade, a estes ou a outros, olhos nos olhos, sem ritualização: amo-te. Assumindo que ‘amo-te’, significa ‘não estou completo sem ti’.
Estas foram as novidades que compartilhámos a 600 metros de altitude.
De regresso a Lisboa, o nevoeiro tinha levantado, o poente ténue de Inverno não encandeava como de costume, e na rotunda em obras o pan card com o presépio dizia ainda «Nós estamos cá para vos acolher». Nós os bons, ou nós peregrinos de caminhos por desbravar?
IN "SOL"
20/12/11
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