02/06/2020

JOSÉ FERNANDES E FERNANDES

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Coronavírus: Reflexões 
em tempo de desconfinamento

Que devemos esperar neste novo tempo? Ou melhor, como deveremos agir para, no respeito da pluralidade democrática, exigirmos a confrontação de programas para a renovação da vida económica, para a reorganização dos grandes serviços públicos, respeitando os grandes desafios do ambiente, da solidariedade, na procura dum melhor caminho nesta nossa Casa Comum? Serão tempos estimulantes que se avizinham. Assim os protagonistas estejam à altura da Exigência e da Necessidade.

O tempo que passou foi interessante. Informação asfixiante, nem sempre fidedigna e rigorosa, nas redes sociais, em grupos de discussão científicos e outros, da política à economia, desafio à lucidez e ao exercício crítico.

 A dimensão deste fenómeno foi não só surpreendente, como aterradora, de dimensão mundial, expressão do espaço mediático global que a internet criou. Recorro à última entrevista de Bertrand Russell na BBC poucos anos antes de morrer com gripe aos 98 anos. Na entrevista, Lord Russell fazia duas recomendações. A primeira, intelectual: apelo à objectividade – quais são os factos? E qual a Verdade que revelam? Deveria ser a preocupação essencial de qualquer estudioso, evitando, desse modo, instrumentalização da realidade para outras finalidades. A segunda era uma recomendação moral: o amor é sábio e o ódio tolo. Um apelo às virtudes da caridade (charity) e da tolerância, num mundo já então profundamente interligado.

 Extrapolando: 

 1. Transparência e Verdade 
São as ferramentas essenciais da actividade científica, e não só: são, também, atributos indispensáveis à vida social, à decisão política e ao governo da Cidade.

A origem do vírus e a actuação das autoridades chinesas têm suscitado enorme controvérsia no espaço global da internet que são alimento para as várias teorias da conspiração.

 Recebi, há dias, um artigo publicado no Boletim do Royal College of Surgeons de Londres, e da autoria de distinto cirurgião cardíaco , sobre a sua participação em congresso médico em Wuhan, em Dezembro de 2019. Refere que, imediatamente após a conferência, foi procurado pelo presidente e dois cirurgiões cardíacos dum grande hospital da cidade, usando máscaras, interessados na tecnologia ECMO (extracorporeal membrane oxygenation) para o tratamento de insuficiência respiratória em doentes com infecções. Segundo o autor, esses colegas mencionaram doença misteriosa complicada nalguns doentes de insuficiência respiratória muito grave causada por um vírus identificado pelo Wuhan Institute of Virology. Em Fevereiro de 2020, cientistas chineses publicam no New England Journal of Medicine uma descrição desta nova doença, dos seus mecanismos e da sua gravidade potencial , a que se seguiram numerosas publicações de autores chineses, precedendo e/ou acompanhando e cooperando com o enorme esforço científico e médico que foi a resposta global a este desafio de Saúde. E a primeira lição, da análise dos factos, é que a comunidade médica e científica chinesa não escamoteou a realidade, discutiu-a com os seus pares e publicou os seus dados nas melhores revistas médicas e científicas mundiais.

O contraste foi absoluto com a decisão das autoridades que sonegaram informação, perseguiram Li Wenliang, o médico que, com outros colegas, tentou avisar a população da realidade e perigo da doença, logo em fins de Dezembro. Censura, prisão e morte de Li Wenliang por contágio da doença serão marca indelével na resposta da Administração, que só semanas depois reconheceu o problema e informou as autoridades sanitárias internacionais. Agora, culminou na exigência de autorização prévia das autoridades para publicações científicas sobre a epidemia na China.

Menciono estes factos, pelo contraponto que não devemos ignorar: de um lado, a abertura de segmentos da comunidade científica chinesa envolvidos no problema e, do outro, a opacidade e cover-up (?) das autoridades. Testemunho da difícil relação entre a Ciência e a Política, no respeito pela Verdade e pelos factos, na defesa da independência dos cientistas, médicos e outros profissionais, perante a instrumentalização política da realidade. Comum nas sociedades fechadas, de poder monolítico, autoritário, que continuam no nosso tempo actual. Ainda seduzem incautos (?), apologistas desses modelos políticos a quem atribuem, sem prova, maior eficácia na resposta à pandemia e aos desafios da contemporaneidade.

Foi adequada e corajosa a decisão tomada logo em 15 de março com o encerramento das escolas e a 18/3 com a promulgação do estado de emergência. Evitaram-se mortes desnecessárias; não entro na discussão sobre o eventual valor económico da vida humana. As fatalidades não foram exclusivas dos mais velhos, ocorrem até em crianças e adolescentes, como agora foi reconhecido na Europa e nos EUA. Felizmente, entre nós terá havido apenas um caso identificado num adolescente; sobreviveu, graças ao empenho e competência da equipa médica que o tratou. Existem mais de 200 casos graves em crianças, na Europa, referenciados como síndrome inflamatório vascular disseminado com mortalidade não despicienda, assim como foi documentada mortalidade em adultos com menos de 50 anos, reduzida, mas real. Evitável? Nunca se saberá ao certo, mas o facto obriga a reflexão e a prudência, perante a incerteza e desconhecimento de toda a complexidade da doença e a dimensão potencial da sua disseminação.

 Prudência é também um requisito do rigor científico, e não deve ser ignorada na fundamentação da decisão política, em especial quando há vidas humanas em risco.

II. As políticas de confinamento e lock-down da actividade são indiscutíveis?
 Reaparece na discussão pública a dúvida se teria valido a pena, se a cura não será pior que a doença. Normal acontecer, agora que se sente que o pior terá passado. As experiências documentadas na China, Itália e Espanha, a hesitação inicial no Reino Unido que motivou um quase-descalabro que impôs medidas drásticas, parecem-me resposta suficiente. Mas há uma outra perspectiva: análise do impacto da omissão e do atraso na tomada dessas decisões restritivas. O New York Times – jornal de referência e de independência – publicou em 21/5 um editorial intitulado Inaction that cost lives , no qual se mostra o impacto na redução potencial do número de mortes se a decisão de distanciamento social tivesse sido tomada uma ou duas semanas antes.

Bem sei que se trata de extrapolação a partir de modelos epidemiológicos, ainda que fundamentados na realidade objectiva da evolução local da pandemia. Mas a evolução da situação na Suécia mostra um número de fatalidades por milhão de habitantes três vezes superior a Portugal e já ultrapassando a dura realidade do Reino Unido. E o sistema público de Saúde na Suécia funciona muito bem.

A omissão ou atraso na tomada de decisões difíceis, como o confinamento e a paragem da actividade económica – lock-down – foram, também, expressão de sobranceria ignorante de alguns perante os avisos dos cientistas e epidemiologistas. Aceitaram sacrificar sectores da população ao efeito grave e potencialmente devastador do vírus, invocando a protecção imunitária de grupo. Decisões que puseram em causa valores humanistas fundamentais na nossa sociedade e que, por isso, são inaceitáveis em Saúde Pública e perante a consciência moral da sociedade moderna, livre e democrática.

Voltemos às realidades norte-americana e, por arrastamento, à brasileira, não obstante as suas especificidades próprias.

Se toda a gestão política tem sido profundamente surpreendente, o discurso é paradigmático: ilustra desvalorização objectiva da Ciência e da Medicina, culminando até na publicitação de medicamento quando a evidência científica publicada já o desaconselhava. Não seria importante, se não fosse o impacto tremendo nos seguidores, também orgulhosamente ignorantes, e nos bem-intencionados que devoram acriticamente a internet! Ilustram, pela negativa, o efeito da disseminação de informação errada, suportada em autoritas política indiferente à Responsabilidade, à Ciência e à Verdade como determinantes na decisão política.

E esta realidade é, também, a outra face duma dimensão preocupante – a desinformação, como acto deliberado de suscitar uma atitude política – que ocorre, em simultâneo, com um dos maiores sucessos em toda esta pandemia: a notável cooperação científica global, da ciência fundamental à medicina clínica, que tornou possível o conhecimento mais pormenorizado dos mecanismos da doença, a sua divulgação imediata e a adequação de protocolos terapêuticos com redução da mortalidade e maior número de recuperados.

 Uma grande lição do tempo difícil que se viveu: a importância da cooperação e diálogo científicos, sem fronteiras, ultrapassando egoísmos nacionais, um sinal importante para a Solidariedade global que se impõe. Parafraseando o poema de John Donne “No Nan is an Island”, também numa crise global não existem “Island Nations”!

Mas há uma outra face da moeda que não se pode ignorar. Tem um pilar:

 III. A desinformação como arma política 
Constitui um outro desafio à consciência crítica e democrática da sociedade global informada, que necessita de resiliência para se adaptar e ultrapassar as dificuldades. Não é exclusiva do tempo, há antecedentes históricos, alguns caricatos, que são expressão do medo da perda de poder e influência perante a inovação científica e social. Mas tem hoje uma dimensão planetária muito preocupante. Os seus mecanismos são conhecidos e foram objecto dum ensaio recentemente publicado – Epidemiology of Misinformation –, publicado em 19/5 na Prospect [4], sobre a difícil sobrevivência das democracias numa era de manipulação sistemática e organizada da Verdade, talvez mais nociva que a própria epidemia do SARS-CoV-2 (vulgo covid-19), a qual a espécie humana acabará por absorver e controlar.

 Negacionismo da Ciência, tida como anti-divindade, creacionismo imposto como oposição à Evolução das Espécies, teoria da terra plana ignorando cinco século de ciência e experiência prática, e outros dislates, nos quais orgulhosamente se revêem políticos que disputam Poder em Democracia. Orgulhosamente, desafiam normas de saúde pública, recomendações das autoridades científicas e sanitárias, acreditam em supremacias raciais e têm como bandeira, num discurso político paupérrimo, a superioridade da sua Island Nation.

Retomo a interrogação de Bernard Lewis What Went Wrong? Num ensaio notável, Margaret MacMillan  identificou a desvalorização da Meritocracia na sociedade e no universo político, privilegiando obediência acrítica e carreirista à competência individual. Depois, o predomínio das Emoções em detrimento dos Factos, num discurso potencialmente mais mobilizador e muito menos exigente culturalmente. São exemplo as teorias da conspiração em relação à vacinação, ao complot de mecenas reconhecidos com sectores tecnológicos e farmacêuticos, uma imensa conspiração global tendo como objectivo a submissão final da humanidade à tecnologia e a uma elite restrita. E, sobretudo, a ignorância orgulhosa perante a sabedoria da experiência. Predomínio dos fiéis junto do ouvido do Príncipe em detrimento de especialistas e técnicos independentes. Perversão libertária de alguma extrema-direita que, invocando o temor do Estado, das suas regras e da sua acção, conduziu ao desinvestimento e desagregação dos grandes serviços públicos, ignorando que são indispensáveis na vivência social organizada e estruturada. E também a presença obsessiva dos protagonistas políticos, a incoerência no discurso, o medo das decisões difíceis, a falta de coragem, mais a complacência dos cidadãos perante a intrusão excessiva do Poder na privacidade da vida individual. Cito no original: far from resisting sudden government intrusion, publics seem to be longing for nanny to tell them everything will be all right by teatime.

 Que devemos esperar neste novo Tempo? Ou melhor, como deveremos agir para, no respeito da pluralidade democrática, exigirmos a confrontação de programas para a renovação da vida económica, para a reorganização dos grandes serviços públicos, a Justiça incluída, respeitando os grandes desafios do ambiente, da Solidariedade entre os diferentes povos, na procura dum melhor caminho nesta nossa Casa Comum?

Haverá um tempo para o exercício da responsabilidade pública, confrontando decisores com os resultados da sua acção, com objectividade e pondo o interesse colectivo em primeiro lugar, e isso é um direito democrático irrecusável, não pode ser uma abdicação temerosa dessa responsabilidade em nome de qualquer interesse menos claro.

O tempo que nos espera será um intermezzo num eterno recomeço do Passado ou, pelo contrário, uma oportunidade para a mudança de hábitos, de paradigmas e de exigências?

 Felizmente, vão surgindo vozes na sociedade civil que clamam com coragem por mudanças em diferentes sectores, da organização económica à Educação e também na Saúde. Na Educação, houve uma lufada de ar fresco: há mais vida que a eterna discussão laboral liderada pela Fenprof. Os professores libertaram-se, estão a ser criativos, a adaptarem-se a um novo mundo de possibilidades. Se formos exigentes e profissionais, será uma grande vitória. E na Saúde, junto a minha voz aos que, durante anos, escrevemos e insistimos que é necessário mudar a organização, o seu financiamento, a sua filosofia hospitalocêntrica, a necessidade de meritocracia, das administrações aos profissionais de Saúde, para efectivamente aproveitarmos as oportunidades e não repetir erros do Passado.

Serão tempos estimulantes que se avizinham. Assim os protagonistas, no Poder e na Oposição, estejam à altura da Exigência e da Necessidade.

* Cirurgião vascular, professor universitário.

IN "PÚBLICO"
31/05/20

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