.
*Escritor
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
24/07/20
.
Lição de imprensa
A
extensa matéria de Miguel Carvalho na revista "Visão", em torno da
figura abjeta de André Ventura e seu partido torpe, é mais do que a
necessária colocação dos pontos nos is acerca de uma usurpação do
princípio democrático, é também uma demonstração de como a imprensa se
tem permitido incluir na normalidade aquilo que devia ser denunciado
desde o início como aberrante.
A
ínfima percentagem de cidadãos que votaram no Chega nunca justificaria o
frenesi gerado com qualquer impropério que André Ventura decida
proferir. Ele não deveria nunca ser visto como a oposição que importa,
porque não foi eleito senão para ser uma nota de rodapé na extensa
Assembleia.
A imprensa não pode
render-se ao espanto fácil, porque para isso voltaríamos ao tempo do
"Incrível", o jornal de miriabilia que procurava apavorar-nos com todo o
tipo de monstruosidade. E a imprensa não pode investir na própria
demissão. O público quer aquilo que faz sentido e que produza verdade e
concorra para o esclarecimento de cada um acerca de todos os planos da
vida em sociedade.
É sintomático que
prepondere no panorama nacional um projeto como o do Polígrafo, porque
toda a imprensa deveria ser um gigante e empenhado polígrafo,
interessada num escrutínio rigoroso, ao invés de aproveitar a boutade, o
boato, a mentira ou sequer a verdade cortada ao meio.
À
defesa de ideias inconstitucionais, pela parte da imprensa tem de
corresponder uma aturada responsabilização, exigindo que as estruturas
dos vários poderes funcionem até que nenhuma inconstitucionalidade possa
passar impune.
A defesa da pena de
morte ou a intenção de discriminar qualquer etnia seriam o bastante para
que todos, e a imprensa na frente, não descansássemos enquanto não se
julgue e condene quem encabeça algo que não é mais do foro da opinião, é
do foro da inconstitucionalidade, e essa é uma agressão inaceitável ao
edifício legal que estrutura o país. Essa é uma agressão inaceitável num
dirigente eleito para representação numa democracia que já decidiu que
não comporta tolerância para com ideias deste tipo.
A
matéria de Miguel Carvalho é um manifesto de jornalismo. Não admira
que, mesmo soterrados em notícias e especulações sobre a pandemia, este
artigo se tenha tornado numa das conversas mais urgentes e profícuas da
semana. Ele é sobretudo uma chamada de atenção para a soberania de um
poder que a imprensa tem de decidir se quer continuar a deter ou se
entregará de mão beijada a um futuro de redes sociais e pura
manipulação.
*Escritor
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
24/07/20
.
Sem comentários:
Enviar um comentário