13/05/2020

ANTÓNIO CLUNY

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O futuro e os caminhos
 do sindicalismo judiciário

O sindicalismo judiciário português distinguiu-se na sua origem de outras correntes associativas judiciais mais tradicionais pois comungava, antes do mais, das aspirações democráticas da sociedade.

Disse um dia, já lá vão muitos anos, mais de 15, numa assembleia-geral de uma associação europeia de juízes e procuradores empenhados na democratização da justiça e na defesa das liberdades (MEDEL), que o associativismo judiciário, quando desligado dos movimentos democráticos que animam a sociedade, pode tornar-se um instrumento politicamente perigoso.

O sindicalismo dos magistrados portugueses, diferentemente de outros movimentos, nasceu, desde logo, comprometido com a vontade de democratização da justiça.

Tal vontade expressava-se já antes do 25 de Abril – mais direta e proximamente, nas teses do Congresso da Oposição Democrática de Aveiro e, também, em alguns documentos da chamada ala liberal do regime – e ganhou corpo e forma efetiva na sequência da revolução.

Nesse sentido, durante muitos anos, o sindicalismo judiciário português foi-se distinguindo de outras correntes associativas judiciais mais tradicionais, pois comungava, antes do mais, das aspirações democráticas da sociedade: por isso optou, aliás, por assumir uma estrutura sindical.

Devido a essa sua opção, participou na fundação da MEDEL, associação europeia que, precisamente, tinha como objetivo exprimir uma leitura crítica do direito e do próprio exercício da justiça, buscando assim contribuir para a sua democratização e o reforço dos direitos das liberdades dos cidadãos a nível europeu.

Acreditava-se então – e muitos ainda acreditam – que, fechado sobre si próprio, o associativismo judiciário tende, naturalmente, a exprimir uma visão corporativa e elitista que não só isola os magistrados da sociedade como facilita a sua captura e instrumentalização por ideais pouco consentâneos com os da Constituição (CR).

Foi isso que aconteceu, de resto, com o já então antigo movimento associativo dos magistrados alemães durante o regime nazi.

Foi isso que, num outro contexto político e judicial, sucedeu agora no Brasil.
Foi isso que ocorreu em Portugal, recentemente, com alguns movimentos sindicais atípicos noutros campos de atividade.

Os magistrados portugueses e os seus movimentos associativos não podem nem devem, por isso, ser neutros: eles têm, em qualquer circunstância, de estar comprometidos ativamente com os valores e princípios da CR.

É que os magistrados não participam, como outros, apenas de um serviço público. Exercem também funções constitucionais fortes e coercitivas no âmbito de um poder do Estado democrático e constitucional: o poder judicial.

E é esse estatuto que torna mais premente a necessidade do seu público compromisso com os valores e princípios constitucionais. Perante eles, não pode haver neutralidade.

Daí também a importância de as magistraturas verem a sua ação – qualquer que seja o plano em que se desenvolve e exprime – balizada escrupulosamente pelo princípio da legalidade.

É que, seja a que pretexto for, se se ultrapassarem os limites impostos por tal princípio constitucional, é a legitimidade da autonomia da sua organização que arrisca – e, nesse caso, bem – entrar em crise.

Por tal razão, também o associativismo judiciário só se realiza enquanto for capaz de ser vigilante em relação a esses valores e princípios e, por isso, crítico permanente da justiça que compete aos próprios magistrados realizar.

Pelo contrário, perde força e pode transformar-se mesmo num instrumento perigoso para a democracia se se converter num puro artefacto de defesa corporativa ou numa peça de promoção de desígnios programáticos de natureza política, alheios – ou indiferentes – à função constitucional de garante dos direitos humanos.

Por tal razão, não é admissível uma cesura entre as posições pessoais públicas dos dirigentes associativos dos magistrados e os compromissos que, institucionalmente, estão obrigados a cumprir com a CR.

Hoje, a dificuldade que alguns representantes de algumas associações profissionais de magistrados têm em fazer-se ouvir, e mesmo em fazer-se entender, até quando procuram explicar as dificuldades profissionais que, na maioria dos casos, os magistrados realmente têm, resulta do seu progressivo fechamento aos problemas da sociedade e às respostas que a CR desenha para eles.

Por tal razão, e ainda por via de um posicionamento cada vez mais autocentrado, algum associativismo judiciário atual tem perdido influência social e margem de efetiva intervenção institucional.

As mensagens, no mínimo autistas, que consegue transmitir só excitam e impressionam, por isso, os seus autores e a respetiva entourage, ou a imprensa amiga e a escandalosa.

Tais mensagens têm, porém, prejudicado não só a imagem pública da magistratura como, sobretudo, os justos anseios dos magistrados enquanto profissionais empenhados na concretização da sua função estatutária e na melhoria da condição institucional que lhe é inerente.

Mas, fundamentalmente, têm prejudicado os direitos dos cidadãos, que necessitam hoje, mais do que nunca, de uma justiça atuante e credível face aos muitos abusos e condutas anticonstitucionais que florescem na sociedade e que a crise da covid-19 destravou.

Só o compromisso sólido com os valores da CR e a compreensão das responsabilidades que o seu estatuto constitucional lhes confere podem voltar a conciliar os magistrados e os seus movimentos associativos com os cidadãos e aqueles que os representam.

IN "i"
12/05/20

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