18/07/2019

PEDRO MARQUES LOPES

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Os Bonifácios estão a ganhar

O texto e a polémica que desencadeou mostraram algo verdadeiramente assustador: ver uma parte da direita calada e outra a enquadrar as opiniões racistas com o "sim, mas", onde não faltou o certificado de inferioridade que é o "se os de esquerda não gostam, nós não podemos desgostar".

Como aparentemente toda a gente, li o famoso artigo de Maria de Fátima Bonifácio. Apesar de ser leitor fiel do Público, não acompanho a obra da senhora e não cheguei à coisa através de mensagens de amigos ou da consulta de redes sociais.

Vinha da tabacaria com os jornais e um nervosíssimo cidadão, que me queria convencer de que Salazar nunca tinha roubado um tostão e que vivemos numa ditadura de corruptos , incentivou-me a ler o que a professora Bonifácio tinha escrito e que, segundo o cidadão, era o que toda a gente sabia e sentia mas não tinha coragem de dizer.

Não é meu costume seguir os conselhos de pessoas que me dizem aquele tipo de coisas, mas li um ótimo artigo do Pacheco Pereira e mesmo ao lado estava a tal obra-prima anunciada pelo cavalheiro que me abordou. A curiosidade fez o resto.

Nem ser publicado pelo Público me surpreendeu. Penso conhecer suficientemente a dificílima realidade dos nossos jornais para ter uma forte suspeita de que ninguém responsável leu antes aquele chorrilho de alarvidades abertamente racistas, de mentiras e de estudadas imprecisões. O jornal comprometeu-se com os seus leitores a não publicar propaganda daquele género e só uma falha pode explicar a aparição de um manifesto racista.

A propósito, todos os comentários sobre a possibilidade de censura prévia e cerceamento liberdade de expressão não passam de puros disparates. Quando um órgão de comunicação social enuncia os seus princípios, comete um erro claro quando vai contra o compromisso que estabeleceu com os seus clientes. Outros jornais e televisões não terão esse código e não falta espaço público para promover todo o género de indignidades. Se isso é compatível com a nossa Constituição e lei, é outra conversa.

Ouvi muitas pessoas a dizer que os argumentos racistas eram tão absurdos que surpreendia que uma pessoa supostamente esclarecida cometesse tantos erros factuais. Mais uma vez não me espantei. Não é que eu não saiba que na Academia a ignorância e a presunção são tão comuns como em qualquer outra atividade, mas, convenhamos, afirmar que os africanos são todos racistas, que odeiam ciganos e invocar doutrina formulada pela empregada doméstica lá de casa é um bocadinho de mais, nem permite que se chegue às barbaridades sobre a cristandade e a Declaração Universal, afinal, dos direitos dos homens brancos.

A doutora Bonifácio replicou o que todos ouvimos nos cafés, lemos em caixas de comentários de jornais e escutamos nos fóruns de televisões e rádios. Ela sabia exatamente onde queria chegar, onde estava o seu público e a melhor forma de ser escutada. É fácil perceber que até os termos e os exemplos são iguais aos daqueles que são por aí repetidos. Agora, quem os repete pode citar uma senhora historiadora, professora universitária e que escreve num jornal de referência.

E, claro, o grupo a que pertencer Maria de Fátima Bonifácio terá o apoio de quem repete os chavões racistas e segregacionistas que a própria enunciou.

Também nada surpreendentes foram os vários textos dos camaradas da doutora Bonifácio. Colunistas que se afirmam admiradores da senhora, gente que compartilha os seus valores políticos, que rejeita até algumas das afirmações racistas do tal texto, mas... A Liliana Valente, jornalista do Público, resumiu no Twitter, de forma exemplar, esse "mas": "E a quantidade de comentários que andam a proliferar por aí sobre Maria de Fátima Bonifácio que dizem qualquer coisa como "ela foi racista, factualmente errada, exagerou, mas..." e o que vem a seguir ao "mas" é normalmente uma maneira racista mas subtil de dizer exatamente o mesmo. Não todos, diga-se, foram tão longe. Mas nenhum destes senhores do "mas" afastou inequivocamente a senhora da sua família política, nenhum afirmou que aquele texto era intolerável. Ficou claro que a gente que a doutora Bonifácio pretende representar é bem-vinda para a prossecução de um objetivo político.

O texto e a polémica que desencadeou mostraram algo verdadeiramente assustador: ver uma parte da direita calada e outra a enquadrar as opiniões racistas com o "sim, mas", onde não faltou o certificado de inferioridade que é o "se os de esquerda não gostam, nós não podemos desgostar".

Esta armadilha em que o centro-direita se está a deixar cair será a desgraça desse espaço e a criação de um problema gravíssimo na nossa democracia - que já existe noutras. Ao não se demarcar claramente deste tipo de discursos racistas e xenófobos ou evidenciando que está disposta a lidar com normalidade com aquilo, está a deixar uma massa enorme de votantes do centro-direita órfãos ou a conduzir à sua radicalização.

A grande batalha ideológica, neste momento, está no espaço da direita. É entre moderados, gente que não tem outra forma de lidar com aquilo que Fátima Bonifácio escreveu do que lhe chamar puro nojo e afirmar que aquilo vai contra todos os princípios civilizacionais que defende, e uma direita que relativiza aquela coisa e não se importa de estar ao lado das pessoas que concordam com aquilo.

Mais, tinha de ser, até por razões históricas, a direita moderada a condenar violentamente os e as Bonifácios e defender princípios fundamentais como a não inversão do ónus da prova, o princípio da presunção da inocência, a sindicância pelo povo dos poderes judiciais, a privacidade face ao Estado, o combate contra a lógica da luta de classes, e que vemos?
Um centro-direita acobardado face a uma direita radical bem financiada que tem órgãos de comunicação próprios, que conseguiu ocupar boa parte do espaço de debate público e que rejeita esses valores primordiais.
As péssimas notícias é que são esses radicais que estão a ganhar.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/07/19

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