A primeira vez que ouvi falar de Manuel
Morais foi há um ano, quando foi entrevistado para o DN por Valentina
Marcelino. Licenciado em Antropologia, Morais tinha concluído uma tese
de mestrado sobre policiamento em "zonas urbanas sensíveis" - a
expressão usada nas polícias para designar aqueles que são considerados
"bairros problemáticos".
O título
da entrevista era «Há polícias racistas e xenófobos e as organizações
nada fazem». Nela, Morais afirmava: "Há elementos das várias forças de
segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam
tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente
racistas. Isto é do conhecimento de todos e, infelizmente, as
organizações nada fazem para expurgar estes "tumores" do seio das forças
de segurança. Pergunte-se à Inspecção Geral da Administração Interna, à
PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força: o que fazem
quando são detectadas estas situações? Nada, não fazem nada."
Que um polícia tenha a coragem de
afirmar isto é notável. Sendo membro da direcção do principal sindicato
da PSP, a ASPP (a Associação Sindical dos Profissionais de Polícia),
ainda mais digno de admiração se torna.
Logo
na altura houve filiados na ASPP a exigir à direcção que abjurasse
Morais. Mas a tempestade passou. Agora, o sindicalista voltou, numa
reportagem da SIC, a falar do racismo nas forças de segurança. Disse
coisas óbvias e sensatas: que há preconceito racial na sociedade
portuguesa e, portanto, também na polícia; que todos temos obrigação de o
reconhecer e desconstruir.
A exibição da reportagem, sobre casos
de violência policial contra negros, ocorreu logo após a condenação de
oito agentes da PSP por agressões, sequestro, insultos, acusações falsas
e falsificação de autos de notícia num processo em que as vítimas foram
habitantes negros da Cova da Moura. Em reacção, surgiu uma petição cujo
autor, um destemido anónimo, se afirmava membro da ASPP e ameaçava
desfiliar-se caso Manuel Morais não saísse da direcção do sindicato,
apelando a outros que fizessem o mesmo.
A petição não tinha
juntado mais de 200 assinaturas quando, na manhã de segunda-feira,
Morais se demitiu. Explicou na SIC Notícias, a seguir, que o fez para
não prejudicar o seu sindicato.
Conheci o fundador da ASPP, José
Carreira. Foi alvo de inúmeros processos disciplinares e ameaçado de
expulsão da PSP por lutar para que os polícias pudessem sindicalizar-se.
Morreu em 2003, aos 48 anos, um ano após a lei sindical da PSP ser
aprovada. Era um homem bom, íntegro e corajoso. A sua defesa do
sindicalismo integrava-se na defesa dos direitos fundamentais; queria
uma PSP democrática e civilizada, que não dividisse o mundo entre os
polícias e os outros e onde os abusos de poder não fossem calados,
consentidos ou até estimulados.
Ao ver Manuel Morais na SIC,
comovido, a garantir que não se arrepende de nada do que disse e que vai
continuar a lutar por aquilo em que acredita, lembrei-me de José
Carreira. E das palavras de Morais ao DN sobre o que as polícias - e
tantos polícias - fazem quando detectam racistas e xenófobos no seu
seio: nada. O contrário, ficámos a saber, do que acontece aos polícias
que denunciam e combatem o racismo.
IN "TSF"
29/05/19
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