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IN "OBSERVADOR"
14/05/19
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Serei eu um monstro?
Cultivamos uma dissonância cognitiva. Se algo acontece e se
sentimos que podíamos fazer algo, rapidamente sentimos que há alguém que
podia/devia fazer mais do que nós. O que é isto?
Nos últimos tempos, senti-me atordoada com uma data de
catástrofes que se foram sucedendo. Sempre me considerei uma pessoa de
causas, e sempre me dediquei às mesmas. Por dedicação, perceba-se o
único esforço de informação e debate das coisas, sempre me senti uma
cobarde por não conseguir fazer nada de muito efetivo. Porém, neste
último mês, senti que por vezes fui vestindo uma espécie de capa de
indiferença que não conhecia em mim. Quase que entrei em modo piloto
automático, ouvia as notícias e não as sentia.
Haverá limites para a nossa capacidade de empatia?
Quando o
furacão Idai atingiu Moçambique, não senti inicialmente a real dimensão
do problema, pelo menos ao nível Humano. Dei por mim a ver as notícias
como se de mais uma inundação se tratasse. Quando os números e as
imagens se materializaram continuei a acompanhar, mas, sem aquela enfâse
que me seria típica. Os números chegaram aos mil mortos, as imagens da
destruição da natureza são impressionantes. Contudo, a minha vida
prosseguiu com aquele pensamento típico de miúda comodamente instalada
“ai que tento tanto problema para resolver”.
Pouco tempo depois,
foi no Siri Lanka. Estava de viagem e soube das notícias pelas partilhas
nas redes sociais. Foram quase 300 mortos, e 500 feridos. Havia um
português envolvido. Ainda por cima alguém que conhecia, de vista, mas
conhecia. Defendia-se que seria uma retaliação aos ataques na Nova
Zelândia. A capa de indiferença voltou a descer sobre mim.
Estou a
escrever-vos com as notícias de uma Venezuela que avança para uma
revolução. Moçambique volta a levar com um ciclone o Kenneth e já lá vão
mais um número grande de mortos. Estou a ver comodamente instalada num
país livre e pacifico. Será esta comodismo um entrave para a
identificação ou serei eu um monstro? Como podemos, nos dias de hoje com
tanta informação, tanto conhecimento, tanta facilidade de mobilização
(pelas redes sociais) que já percebemos que tem impacto, tornarmo-nos em
ilhas indiferentes? Porque não nos mobilizamos mais para fazer a
diferença?
Este comodismo onde estamos instalados, não nos
desafia, não nos mobiliza e isso diz muito sobre nós. Tal como julgamos
gerações anteriores que assistiram a realidades como o Holocausto e nada
fizeram, também nós estamos a assistir a uma data de realidades e nada
fazemos, porque estamos longe, porque não nos identificamos, porque
vivemos a correr.
Seremos nós pequenos monstros?
Julgo que
há alguns fatores que justificam tal e julgo que devíamos tentar
reverte-los, para que possamos ser pessoas que sentem e se envolvem.
De
facto, vamos distanciando-nos dos problemas um tanto ao quanto para
nossa defesa. Criamos um círculo à nossa volta e vamos lendo os
problemas, em primeiro como distantes de nós. Moçambique, Siri Lanka,
Venezuela…estão a quilómetros de distância. Instalamos aquele pensamento
cómodo de que é longe e não podemos fazer nada.
Há ainda outro
círculo que gostamos que nos contorne. Quando se fala em catástrofes,
desgraças todos os dramas Humanos que nos entram pela vida dentro,
através das redes sociais, ou das televisões, ficamos assustados.
Mecanismo de defesa? Desligamos o nosso cérebro, desligamo-nos do tema,
habituamo-nos…. Colocamos um filtro e as notícias trágicas, soam de
igual modo como as notícias de trivialidades.
Todavia, não ficamos
por aqui, cultivamos uma dissonância cognitiva. O que é isto? Ora se
algo acontece e se sentimos que podíamos fazer algo, rapidamente
sentimos que há alguém que podia/devia fazer mais do que nós. Esta
questão está bem patente na questão ambiental. Pedem que deixemos de
usar plásticos, passemos a andar mais a pé, que diminuímos o consumo de
carne…O nosso primeiro raciocínio é “sou uma pequena gota no oceano; o
meu vizinho é bem pior do que eu, eu faço esse esforço e nada muda”.
Tudo isto, levamo-nos a manter o nosso estilo de vida sem fazer
alterações, sem nos envolvermos nas causas.
Assim, entramos na
espiral de negação, ignoramos, ridicularizamos (muitas vezes). Não
significa falta de conhecimento, sabemos que existe, mas agimos como se
não soubéssemos. Sim, baixa sobre nós a hipocrisia.
Estarei eu e todos nós a transformarmo-nos em monstros?
IN "OBSERVADOR"
14/05/19
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