01/02/2019

RITA GOUVEIA

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Terá o legislador 
relido Shakespeare?

Ser-se-á um bobo, um irresponsável e um incauto, ao entregar a um terceiro a gestão do nosso património e da nossa vida?

O Rei Lear, sensível às juras de amor de duas das suas filhas, dividiu e entregou-lhes o seu reino. O Bobo, depois da traição daquelas filhas, disse-lhe: "Quem o conselho te deu de dares tudo o que era teu dá-lhe lugar ao pé do meu."

Imagine-se um diagnóstico de uma doença incapacitante, ou imagine-se a vontade de simplesmente acautelar o futuro de uma velhice que possa ser progressivamente incapacitante. Ser-se-á um bobo, um irresponsável e um incauto, ao entregar a um terceiro a gestão do nosso património e da nossa vida?

No próximo dia 10 de fevereiro entrará em vigor a Lei n.º 49/2018, que aprovou o regime do maior acompanhado, dirigido àqueles que, "por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, estejam impossibilitados de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou cumprir os seus deveres". Este regime vem substituir os institutos da interdição e da inabilitação, procurando criar um regime mais flexível, que possa adequar-se melhor à situação de incapacidade de cada um, reduzindo o conteúdo do acompanhamento ao estritamente necessário.

De acordo com o novo regime, o maior de 18 anos pode, prevenindo uma situação de eventual necessidade de acompanhamento, celebrar um mandato pelo qual atribua a um terceiro o poder de gerir os seus interesses, com ou sem poderes de representação. Este mandato poderá ser mais tarde aproveitado pelo tribunal que venha a determinar o acompanhamento do maior, que o tomará em consideração na definição do âmbito da proteção a estabelecer ao maior e na designação do acompanhante.

Um mandato com estes pressupostos comporta, porém, riscos, uma vez que o mandante poderá perder progressivamente a capacidade para avaliar a forma como o mandatário por si escolhido exerce as suas funções e para se aperceber de eventuais abusos.

O legislador previu a possibilidade de o mandato ser revogado a todo o tempo pelo maior, bem como a possibilidade de o tribunal fazer cessar o mandato quando seja razoável presumir que a vontade de mandante seria a de o revogar. Mas será isto suficiente? Ou deveria o legislador ter-se recordado de como a natureza humana na ficção do Rei Lear facilmente se torna realidade?

O legislador não previu um regime específico que, por exemplo, pela imposição de certos requisitos quanto à forma que o mandato deverá revestir, acautele a necessária ponderação na elaboração do mesmo e que permita o necessário controlo, por parte de uma entidade autónoma e isenta, sobre a existência deste mandato e sobre o cumprimento do mesmo, ao longo do tempo, no interesse do mandante.

Em consequência, a possibilidade de, com pleno uso das nossas faculdades, poder definir quem e em que termos serão geridos os nossos interesses num futuro de progressiva perda dessas faculdades, apenas será vantajosa se, através da elaboração do mandato com a devida assessoria jurídica, se identificarem e reduzirem os riscos acima referidos.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
31/01/19

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