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IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
31/01/19
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Terá o legislador
relido Shakespeare?
Ser-se-á um bobo, um irresponsável e um incauto, ao entregar a um terceiro a gestão do nosso património e da nossa vida?
O Rei Lear, sensível às juras de amor de duas das suas filhas,
dividiu e entregou-lhes o seu reino. O Bobo, depois da traição daquelas
filhas, disse-lhe: "Quem o conselho te deu de dares tudo o que era teu
dá-lhe lugar ao pé do meu."
Imagine-se um diagnóstico de uma
doença incapacitante, ou imagine-se a vontade de simplesmente acautelar o
futuro de uma velhice que possa ser progressivamente incapacitante.
Ser-se-á um bobo, um irresponsável e um incauto, ao entregar a um
terceiro a gestão do nosso património e da nossa vida?
No próximo
dia 10 de fevereiro entrará em vigor a Lei n.º 49/2018, que aprovou o
regime do maior acompanhado, dirigido àqueles que, "por razões de saúde,
deficiência, ou pelo seu comportamento, estejam impossibilitados de
exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou cumprir
os seus deveres". Este regime vem substituir os institutos da interdição
e da inabilitação, procurando criar um regime mais flexível, que possa
adequar-se melhor à situação de incapacidade de cada um, reduzindo o
conteúdo do acompanhamento ao estritamente necessário.
De acordo
com o novo regime, o maior de 18 anos pode, prevenindo uma situação de
eventual necessidade de acompanhamento, celebrar um mandato pelo qual
atribua a um terceiro o poder de gerir os seus interesses, com ou sem
poderes de representação. Este mandato poderá ser mais tarde aproveitado
pelo tribunal que venha a determinar o acompanhamento do maior, que o
tomará em consideração na definição do âmbito da proteção a estabelecer
ao maior e na designação do acompanhante.
Um mandato com estes
pressupostos comporta, porém, riscos, uma vez que o mandante poderá
perder progressivamente a capacidade para avaliar a forma como o
mandatário por si escolhido exerce as suas funções e para se aperceber
de eventuais abusos.
O legislador previu a possibilidade de o
mandato ser revogado a todo o tempo pelo maior, bem como a possibilidade
de o tribunal fazer cessar o mandato quando seja razoável presumir que a
vontade de mandante seria a de o revogar. Mas será isto suficiente? Ou
deveria o legislador ter-se recordado de como a natureza humana na
ficção do Rei Lear facilmente se torna realidade?
O legislador
não previu um regime específico que, por exemplo, pela imposição de
certos requisitos quanto à forma que o mandato deverá revestir, acautele
a necessária ponderação na elaboração do mesmo e que permita o
necessário controlo, por parte de uma entidade autónoma e isenta, sobre a
existência deste mandato e sobre o cumprimento do mesmo, ao longo do
tempo, no interesse do mandante.
Em consequência, a
possibilidade de, com pleno uso das nossas faculdades, poder definir
quem e em que termos serão geridos os nossos interesses num futuro de
progressiva perda dessas faculdades, apenas será vantajosa se, através
da elaboração do mandato com a devida assessoria jurídica, se
identificarem e reduzirem os riscos acima referidos.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
31/01/19
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