O Estado da (des)União
norte-americana
O discurso do Estado da União mostrou um Trump novo? Não. Mostrou
um presidente capaz de fazer um discurso de união nacional mesmo com
intenções de vitimização e que quer alargar a sua base eleitoral.
Muitos terão ficado surpreendidos com a forma
como Donald Trump se dirigiu aos norte-americanos no seu segundo
Discurso do Estado da União, que chegou com uma semana de atraso
(costuma ser na última terça-feira de janeiro), devido a
desentendimentos entre partidos que levaram a speaker da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosy, a adiar o convite uns dias.
No entanto, o tom cordato, pontuado aqui e ali por duríssimas
críticas aos democratas – que Trump chama veladamente “socialistas”,
para os empurrar o mais que pode para a esquerda – e apontamentos sobre a
“missão americana”, que se propõe, entre outras coisas, “acabar com a
tirania”, frase que nunca lhe pensei ouvir, mas que se dirigiu
essencialmente ao eleitorado da oposição, foram das poucas novidades.
Este discurso teve quatro pontos essenciais que dão pistas sobre os dois
anos que restam do mandato de um dos mais controversos presidentes
norte-americanos de sempre.
O primeiro prendeu-se com o discurso
de unidade nacional. Desde que os democratas foram eleitos em maioria
para a Câmara dos Representantes, em novembro passado, Donald Trump
passou a enfrentar um “governo dividido”, logo, a maior fonte de
oposição ao presidente e às suas políticas.
Ainda que Donald Trump tenha
referido diversas vezes que a unidade era uma questão de “grandeza”,
também deixou escapar, numa única frase, que a “agenda para a América”
era a que foi criada por si. Aliás, este discurso de unidade, tão
enfatizada e engrandecida, serve na perfeição ao presidente (em campanha
eleitoral desde que foi eleito). A partir de agora, sempre que não
conseguir fazer passar as suas mais polémicas medidas – já vamos ao muro
– pode muito bem alegar, e vai fazê-lo, provavelmente, que os seus
fracassos se devem ao bloqueio dos adversários. Trump tem uma avenida
aberta para a sua vitimização e não vai desperdiçá-la.
O segundo
ponto fundamental, é a trilogia criada por Trump em campanha: a (1)
segurança norte-americana está dependente (2) do combate à emigração
ilegal que (3) só pode ser garantida se for construído um muro na
fronteira sul dos Estados Unidos. Ainda que mantenha o argumento
central, este discurso avançou novos argumento. Por um lado, Trump
argumentou que o muro com o México não foi uma ideia sua e que já
existem várias barreiras físicas contruídas por anteriores presidentes.
Além disso, explicou que não se trata do muro que muitos caricaturam (em
parte por culpa de Trump, sempre tão assertivo nesta proposta), mas de
um projeto a ser erguido em pontos estratégicos, onde a travessia ilegal
é mais provável. Por outro, transformou a questão da emigração ilegal
num problema “moral” (entre aspas, porque foi a palavra usada). Explicou
que este era o problema que melhor ilustrava as disparidades entre
“elites políticas” e “classe trabalhadora”. Os primeiros podem defender o
que quiserem, porque no fim de contas, estão seguros nas suas vidas
encapsuladas. Já os últimos, desprotegidos, sofrem de insegurança física
e económica. Trump estava nitidamente a falar para a sua base de apoio
mais fiel, os jacksonianos (classe trabalhadora e média-baixa) que se revoltou contra Washington e elegeu um outsider. Foi a forma que encontrou para lhes relembrar – parece que ficaram desagradados com o shutdown – que não se esqueceu deles.
O
terceiro ponto está relacionado com este, e já foi aflorado acima.
Trump procura alargar a sua base de apoio, e este discurso serviu para
dar o pontapé de saída nesta intenção. O Discurso do Estado da União tem
sempre um conjunto de convidados que simbolizam alguma coisa importante
para o presidente. Desta vez, além de militares que combateram na II
Guerra Mundial (as forças armadas tendem a gostar de Trump), as luzes da
ribalta recaíram sobre Alice Johnson e Matthew Charles, dois
ex-presidiários afro-americanos recentemente libertados por
comportamento exemplar, e ainda Elvin Hernandez, que representou
simultaneamente as forças policiais que protegem os americanos e a
comunidade hispânica. Já vestidas de branco estava um conjunto de
mulheres para marcar o facto de representarem 58 por cento do aumento do
emprego desde que Trump foi eleito. O ciclo fechou com um sobrevivente
quer do Holocausto, quer do recente ataque à Sinagoga de Pittsburgh,
Judah Samet.
O presidente americano parece estar a querer replicar a
Grande Coligação de Ronald Reagan, juntando aos seus eleitores brancos,
desfavorecidos e/ou sem grande esperança no futuro, outros que partilhem
os mesmos problemas apesar de pertencerem a minorias (quando
devidamente legalizadas e integradas). Escusado será dizer que estes
grupos sociais tendem a preferir votar no partido Democrata, mas serão
sensíveis à ideia de que um comportamento exemplar lhes abre caminho
para a inclusão não só social mas também política.
Finalmente, é
importante falar de política externa. Trump escolheu vários assuntos,
entre os quais três, que têm um denominador comum, aquilo a que chamou
“uma nova política de segurança ousada”: a Rússia, a Coreia do Norte e a
Venezuela. De facto, as políticas relativamente a estes estados foram
estratégias de tudo ou nada. Rasgar o acordo de redução de mísseis
intermédios com Moscovo para o renegociar, de uma forma mais abrangente,
com a Rússia e a China; levar a Coreia do Norte a uma quase-guerra para
chegar à mesa de negociações nos termos norte-americanos; reconhecer
inequivocamente desde a primeira hora Juan Guaidó como presidente
interino da Venezuela, possivelmente a única forma de pôr Maduro – um
barulhento inimigo dos Estados Unidos – entre a espada e a parede,
alavancando um movimento popular que estaria perdido. Esta é uma das
novidades que Trump trouxe para a Casa Branca em 2016: joga-se tudo ou
nada, especialmente em política externa. E, aliás, é importante que se
acrescente que esse tudo ou nada deverá continuar ou agravar-se, não só
pelo sucesso da estratégia com a Coreia do Norte, mas porque Trump está
mais liberto para deixar a sua marca nas questões internacionais.
O
Discurso do Estado da União mostrou um Trump novo? Não. Mostrou um
presidente capaz de fazer um discurso de união nacional mesmo com
intenções de vitimização; mostrou um presidente que quer alargar a sua
base eleitoral. Mas também mostrou um Trump menos agressivo na forma,
embora exatamente igual no conteúdo e na determinação.
IN "OBSERVADOR"
11/02/19
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