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IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
11/12/18
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O assaltante da fome
A expressão literária de sentimentos, isto é, a descrição de emoções por escrito, resume-se algumas vezes (demasiadas) a colar com cuspo nervosismos contraditórios, como “Maria vivera uma alegria magoada” e “João experimentava um sereno êxtase”, acabando os que cometem tais relambórios convencidos de que escreveram uma poética utilidade (bolas, agora fui eu).
Nem sei se isto é profundamente superficial ou superficialmente profundo. Paro aqui porque gosto do meu leitor.
Sobre a D. Graça posso dizer que ela disse tudo o que pensava do
ladrão de carteiras sem conceder um segundo à misericórdia. Também
gostei da sua voz de tabaco. E sobre a D. Idalina, a improvável heroína e
justiceira deste caso, por ter corrido na rua contra ordens médicas.
Também houve aquela chinelada na cabeça, punição que tem vindo a desaparecer da imprensa desde a queda de Saddam Hussein.
– Tem alguma relação com o arguido?, perguntou a juíza à D. Graça.
– Não tenho nem quero ter! Foi ele que me assaltou.
Foi num 1º de Agosto. Graça, na sua voz soprada uma oitava abaixo,
contou que trabalha no Hospital Pulido Valente e que naquele dia saíra
para tomar café, atravessando a área de toxicodependentes e de
comportamentos aditivos.
– Não gosto de tomar o meu café da manhã lá dentro porque encontro
colegas. Eu estava precisamente com esta mala que trago hoje. Tenho
sempre o cuidado de andar com ela junto a mim, acrescentou Graça,
embalando a mala como um gatinho.
Mas a mala não é muito segura, o fecho é de íman, e provavelmente já
andava a ser observada há dias pelo ladrão, pensa agora Graça, com o seu
cabelo oxigenado, curto e visível a grande distância. Sentiu um apertão
nas costas e pensou:
– Ai, um colega que me quer pregar uma partida… espera aí que já te
dou um “beijinho”!, continuou
Graça, mostrando à juíza que sabe rodopiar
a mala como uma funda de David.
Mas sentiu “uma coisa a penetrar” na mala e depois só viu um homem a
correr com a carteira na mão. É raro andar com muitas notas mas que
naquele dia levava 210 euros para pagar uma obra em casa.
– E, como já não tenho 20 anos e tenho problemas fibromiálgicos, não
consigo correr. E tive uma crise de choro, que também não é hábito meu.
Então, caíram do céu os heróis. Enquanto chorava, viu uma senhora a
chegar com a carteira na mão e, atrás dela, o assaltante agarrado por um
homem e um guarda do hospital. Vejam o karma deste ladrão: uma mulher
desconhecida, Idalina, que nada tinha com o assunto, e sofria dos
pulmões (acabara de sair da consulta), viu o crime e desatou a correr:
– Pega ladrão, pega ladrão!
Assustado, o assaltante foi cair nos braços de turquês de um homem
que, afinal, era um polícia à paisana que ali passava por acaso. No
tribunal, Graça sofreu um ataque de tosse nicotínica e foi lá fora beber
água. Voltou e a juíza perguntou-lhe:
– Ele disse o motivo para a roubar?
– Disse que tinha fome, que tinha fome… A que propósito?! Se tinha
fome ia trabalhar, ia pedir. Eu podia ter posto um advogado, mas não, eu
estou aqui, ao contrário dele, porque sou uma boa cidadã. Eu estou
danada! E agora espero notícias em casa.
Depois entrou a mulher que ajudou na detenção. Idalina, pobre,
mulata, cansada das vezes que fora ao tribunal tentar testemunhar,
sempre adiadas.
– Ele dizia “eu tenho fome, eu tenho fome”, e eu comecei a ficar
nervosa e a dar-lhe soco, a dar-lhe soco e pontapé… E depois a Dona
Graça recebeu a carteira, tirou a chinela e começou a bater nele. Se tem
fome, pede, não é para andar a agredir alguém e a roubar!
A juíza louvou em Idalina a coragem, uma doente “a correr atrás de um ladrão, não sendo uma carteira sua”.
– Depois eu tive um problema e tive que ser internada, que eu tenho um problema no pulmão.
– Por isso, enquanto cidadã, o meu muito obrigada.
– Já não recebo mais cartinha em casa?
– Não, não, terminou.
Lisboa, gaiata, de chinela na mão, Lisboa, menina, que sova no
ladrão. Mais um contributo, espero, para o que pensa o povo da justiça
popular.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
11/12/18
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