Nunca conheci nenhum génio.
Conheci e conheço muitas pessoas
extraordinárias, que fizeram e fazem coisas extraordinárias. Artistas,
cientistas, aventureiros, mestres, activistas... O mundo está cheio de
grandes inspiradores e de feitos memoráveis.
E também, muitas vezes acontece, pessoas normais, vulgares, anónimas cometerem actos invulgares, excepcionais, extraordinários.
Génios
é outra coisa. Não que seja importante determinar com rigor a partir de
quando ou de quanto é que determinado indivíduo passa a ser considerado
um génio.
Não é só uma questão de QI. O quociente de inteligência
não chega se não se traduzir em obra. E não é necessariamente uma
inteligência mensurável. Ou, por definição, convencional. É uma
inteligência que, sem sabermos exactamente como, produz uma leitura do
real que até aí ninguém tinha feito e que passa a partir daí a ser
indissociável desse mesmo real.
Nunca conheci nenhum génio, mas
posso ter-me cruzado com um, sem o saber. Quem sabe a mulher por quem
passei há pouco seja um génio e eu nem faço ideia. Ou aquele miúdo a
brincar no jardim venha a ser um outro génio que mude o mundo e a nossa
maneira de olhar para ele.
Tantas pessoas se cruzaram com Fernando
Pessoa na Baixa de Lisboa, naquelas primeiras décadas do século
passado, sem saberem que aquele homem comum, discreto, indistinto,
estava a escrever a obra mais importante do século XX português, uma das
mais importantes e inteligentes obras do mundo daquele tempo. Sem
saberem que aquele era o maior, porventura o único, génio português do
século.
Diverte-me pensar que o meu avô, ou o meu tio, que
trabalhava na Baixa naquele tempo, ou o meu pai, que começou a trabalhar
muito novo em escritórios nessas ruas, podem ter viajado de eléctrico
com o Pessoa, trocado umas palavras com ele, ter-lhe dito bom dia.
Fico
fascinado ao imaginar estes cruzamentos de figuras históricas ou da
nossa história pessoal, que partilham a mesma época e habitam ou viajam
pelos mesmos lugares - ao fantasiar os seus encontros prováveis e
improváveis, as hipóteses de histórias, ou pelo menos de incidentes
romanescos, que essas combinações de encontros desencadeiam.
Pessoa
foi talvez o único génio português do seu tempo. Mas só nos apercebemos
da sua dimensão muito depois de ele ter morrido. Como se o seu tempo
não estivesse preparado para o reconhecer.
Há sempre uma
inadequação do génio ao que é dominante na sua época, precisamente
porque ele vem pôr em causa a percepção convencional desse tempo.
Hoje
estamos a viver tempos terríveis com notícias cada dia mais
preocupantes sobre o estado do mundo: o equilíbrio ecológico do planeta
ameaçado, as comunidades livres e democratas cercadas de estupidez e
ódio.
Precisamos como nunca de génios neste momento da civilização
em que nos encontramos. Precisamos de ideias geniais que salvem os
oceanos e as florestas, o planeta e as espécies animais que nele vivem
e, por fim, que nos salvem a nós de nós próprios, humanos.
Mas a salvação não vai chegar de nenhuma figura providencial genial ou espiritual, messiânica. Nunca chegou.
Num
cartoon recente, uma personagem perguntava à outra: "E agora, o que
faremos?" E a outra respondia: "Poesia, esses canalhas não suportam
poesia".
É um bom princípio.
No livro de poemas "Estar Em
Casa", Adília Lopes escreveu: "Só gosto das pessoas boas quero lá saber
que sejam inteligentes artistas sexy/sei lá o quê/se não são boas
pessoas/não prestam".
Ricky Gervais, um dos mais famosos comediantes da actualidade, escreveu e produziu em 2012 uma curiosa série, Derek.
Derek
é a história de Derek Noakes um homem de 50 anos que trabalha num lar
de idosos. Derek é uma personagem peculiar, vulnerável, com um
comportamento infantilizado e um desenvolvimento intelectual que,
digamos, oferece desafios.
O que é muito interessante na série é a
forma como ele nos mostra no ambiente fechado daquele lar de idosos -
imagem grotesca, crua e desapiedada daquilo que acabará por se tornar a
nossa existência - que, mais importante do que ser esperto ou bonito, é
ser amável, ser bom.
A bondade tem sido muito desvalorizada.
Valoriza-se a beleza, a inteligência, a criatividade, o talento, o
poder, a rebeldia, mas não a bondade.
Talvez porque a bondade
tenha sido tomada pelas religiões, e na nossa sociedade ocidental pelo
cristianismo e pelo catolicismo. E se é inegável a extraordinária
mensagem que a personagem de Cristo e o Novo Testamento trouxeram à
nossa civilização, precisamente no sentido de louvar e praticar o bem; e
que muito do que de bom tem sido feito em prol dos outros tem sido
feito no âmbito das instituições religiosas - é agora tempo de o fazer
de forma prosaica, sem tralhas eclesiásticas, sem profetas, sem deus,
sem deuses.
O que hoje precisamos é de acção política directa, de
cidadania corajosa e militante contra todo o ódio. E, mais do que nunca,
o que precisamos é do culto e da prática diária da bondade.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/10/18
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