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IN "OBSERVADOR"
11/10/18
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A máscara que caiu
com Ronaldo
Vivemos num país profundamente machista mascarado de defensor da
igualdade de género. Gastam-se energias a procurar o feminino das
palavras enquanto se encontram desculpas para uma violação.
Já muito se escreveu sobre a notícia da noite em Las Vegas, que
envolve Cristiano Ronaldo e a norte-americana Kathryn Mayorga, na altura
com 25 anos. O trabalho do Der Spiegel é uma investigação como
infelizmente hoje temos poucas. Quem quer conhecer a verdade
jornalística (a da justiça vai começar agora) pode e deve ler este texto em inglês ou este que é a tradução em português ou ainda esta sequência de um jornalista
dessa publicação. Era por aí que todos devíamos começar, antes de
emitir uma opinião. É uma investigação exemplar, difícil e corajosa,
porque envolve uma pessoa com o poder que lhe dá o dinheiro, a
popularidade e até o respeito pelo que conquistou a nível internacional
com trabalho e persistência.
Depois do espanto que a reportagem
naturalmente provocou, alguns de nós, em Portugal, enfrentou um violento
choque. Não, não foi o choque da notícia. Foi o choque de descobrir que
conhecíamos mal o país. Descobrimos que sobrevivem maneiras de pensar
que julgávamos erradicadas. Já não valia a pena estar a debater e a
tentar moderar os excessos desencadeados pelo movimento MeToo. O país
estava afinal na pré-história, nem sequer na pré-história do feminismo.
A
revelação daquela noite em Las Vegas mostrou-nos uma faceta
desconhecida dos valores de alguns portugueses (eu, pelo menos, não
conhecia). Estamos completamente enganados quando pensamos que vivemos
num país em que a maioria – ou pelos menos aqueles que têm acesso aos
jornais e às redes sociais – defende, com base em princípios, a
igualdade entre homens e mulheres. Estamos completamente enganados se
acreditamos que a maioria combate o abuso do poder de uma pessoa sobre
outra pessoa, venha ele de quem vier, de onde vier e como vier. Estamos
completamente enganados se consideramos que a maioria é contra a
violação sexual, ponto final, sem considerandos.
Razão tem Nuno
Garoupa, muitos anos a viver no estrangeiro, quando me disse numa
entrevista ao jornal Eco (perdoem-me a primeira pessoa do singular) que o
que mais o chocava em Portugal era a desigualdade de género.
Na altura fiquei admirada com a avaliação machista que fez da sociedade
portuguesa. Mais tarde Nuno Garoupa alertou-me para essa minha
admiração quando partilhou a entrevista ao Expresso de Ricardo Reis,
um outro economista também com uma longa carreira no estrangeiro. Diz
ali Ricardo Reis que, quando vem a Portugal, vê que as mulheres “têm de
se defrontar com um enorme sexismo e com atitudes estranhas”. Como têm
razão, como o caso de Ronaldo mostrou como nunca que viram o que quase
ninguém via (eu, pelo menos).
Vale a pena partilhar aqui alguns textos publicados sobre este tema com os quais todos devíamos concordar. João Miguel Tavares foi um dos primeiros – “Viva o #MeToo! (A não ser que atinja CR7)” –, seguindo-se outros como o de Ana Sá Lopes – “Santo Ronaldo e as prostitutas” –, Fernanda Câncio – “Aquela grande galdéria e o nosso Cristiano” –, Alexandre Homem Cristo – “Ronaldo acima do bem e do mal” — e Maria João Marques – “Este país não é para mulheres”.
E
não parece mesmo ser para mulheres. Os comentários que lemos e ouvimos,
ao trabalho do Der Spiegel, transportam-nos para um país de antes do 25
de Abril 1974. Como se o Estado Novo tivesse saído do país mas tivesse
ficado dentro nós, aprisionados por aqueles valores de heróis nacionais,
de mulheres que são sérias não têm ouvidos, não usam decotes ou saias
curtas, não dançam em discotecas, não se abraçam a homens, não saem
sozinhas com homens e muito menos à noite, não entram num quarto com um
homem. E estamos a falar da exigência mínima. Porque foi aí, tão baixo,
que chegámos. Já nem se está a falar em considerar que “não é não”, seja
em que situação for, e dito por quem quer que seja: uma mulher
desconhecida do parceiro, a mulher ao marido ou uma prostituta.
Que
país é este, em que afinal vivemos, que gasta energias a dar às
palavras o género feminino para depois entrar na lógica da “culpa foi
dela” num caso de violação sexual? (Não, não sabemos se é culpado, no
sentido jurídico, nem sabemos se é inocente, mas esse raciocínio é
válido para as duas partes). Que país é este, que não tem mundo
suficiente para perceber que uma violação é um choque tal, que se pode
estar anos sem querer falar disso, que o acto de se queixar é em si de
uma coragem extraordinária? Já tínhamos tido alguns sintomas desse país
nas decisões judiciais, a mais recente das quais com origem no Tribunal da Relação do Porto sobre a violação de uma mulher inconsciente numa discoteca em Gaia. Mas tínhamos condições para pensar que era coisa do conservadorismo dos juízes. Mas não é.
A
violação é um crime, quase tão grave como um assassínio. Há uma parte
da pessoa que morre, que mesmo com muito trabalho terapêutico não volta a
recompor-se, a renascer. A pessoa nunca mais voltará a ser a mesma. E
assim como ninguém desculpabiliza um assassino com argumento de que a
pessoa era terrível ou pôs-se a jeito, também não se pode
desculpabilizar uma violação. Nem que tenham passado 50 anos. Foi o
tempo que a vítima precisou para conseguir falar.
Mesmo
considerando que estamos na pré-história, o que parece ter acontecido é
pior do que isso, já que os violadores eram muito pior tratados nas
comunidades rurais, como nos conta Camille Paglia no livro “Mulheres
Livres, Homens Livres”. A violação, diz, “tem sido um problema horrível
com que as mulheres se debatem desde que há registos históricos”. Mas
recorda que no seu país de origem, a Itália, “ainda não há muito tempo
os violadores eram esfaqueados, castrados e pendurados numa corda”.
Hoje, em Portugal, são desculpabilizados.
O livro de Camille Paglia é uma compilação de artigos seus e pode ler-se aqui uma crítica de João Pedro Vala e aqui um artigo de Luís Aguiar-Conraria.
É uma feminista muito crítica dos novos movimentos feministas, opõe-se à
engenharia social que nega o peso da biologia e considera que esta é
uma era que não preparou as jovens mulheres para “a vida como ela
realmente é”. Porque, diz, “há coisas que não podemos mudar”, há “uma
quantidade enorme de aventuras individuais” em que uma mulher nunca
poderá participar e “as mulheres conhecem estas verdades sombrias desde
sempre”.
Podemos estar de acordo ou em desacordo com Camille Paglia
(pela minha parte penso que exagera no determinismo da biologia,
nomeadamente ao considerar que assim se explica o comportamento
descontrolado de alguns homens), mas o que nunca podemos justificar, por
muito arriscado que tenha sido o comportamento de uma mulher, que a
violação tem algum tipo de perdão ou justificação.
De qualquer
forma, no estádio em que estamos em matéria de igualdade de género,
falar sobre o que escreve Camille Paglia é como se estivéssemos a
discutir o direito das mulheres a votar no inicio do Estado Novo. Na
pré-história não se pode debater a internet.
Quando nos Estados
Unidos o feminismo passou para um patamar de conquista de espaço no
poder, nós por aqui ainda estamos na fase em que as mulheres lutam para
que as consideram como iguais. Foi isso que tristemente aprendemos com o
caso de Cristiano Ronaldo em Las Vegas, que vivemos num país
profundamente machista em que se finge ser muito moderno e igualitário a
debater palavras. As mulheres servem para trabalhar, ganhar também
dinheiro para a casa, mas desde que se portem como no início do século
XX, é assim que muita gente pensa. Ronaldo fez cair as máscaras da
igualdade e o que vemos atrás dessas máscaras é aterrador.
IN "OBSERVADOR"
11/10/18
* Somos há muitos anos leitores e admiradores de HELENA GARRIDO, pela clareza e coerência dos textos que publica.
O primeiro impulso dos pensionistas foi negar a veracidade das acusações a CR7 logo na primeira notícia. Não negámos por machismo, somos em teoria e na práctica absolutamente defensores da total igualdade de género, mas porque um símbolo vivo tão importante para os portugueses pudesse estar implicado num imbróglio destes. Já tínhamos lido todos os textos que a autora refere na peça e após cada leitura temos vindo a ficar cada vez mais tristes. Esperamos pela Justiça.
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