02/06/2018

SÓNIA SAPAGE

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Se eu pudesse escolher
o dia da minha morte

Preferia viver de mais do que de menos, embora isso pouco tenha a ver com o modo como se morre.

Se eu pudesse escolher o dia da minha morte, escolhia, provavelmente, o dia do meu aniversário. Mais vale que sofram por mim uma vez a cada 12 meses do que duas e assim ficava tudo concentrado no fim do ano: 31 de Dezembro. Além disso, parece-me uma data perfeita para fechar ciclos.

Mas se eu pudesse escolher o dia da minha morte, o que queria mesmo era que houvesse uma trovoada. Seca. Daquelas que riscam o céu, fazem tremer a terra a às vezes até fazem estalar os ouvidos com o estrondo. Podia haver uns pingos de chuva, poucos e grossos, só para se sentir o cheiro a terra molhada, mas nada de sol, nem excesso de frio. Eu sei que não há trovoadas secas em Dezembro, mas isto de pensar no dia em que queremos morrer não tem nada de racional.

Gostava de estar ao pé do mar, porque apesar de ter nascido muito longe dele, faz parte do meu dia-a-dia, da minha viagem para o trabalho, da minha varanda, das corridas e passeios e das férias. Mar português, claro, porque se eu pudesse escolher não morreria noutra língua, independentemente de poder ser feliz no resto do mundo e de gostar muito de viajar e de conhecer sítios novos.

Também preferia que fosse em casa do que num hospital ou num lar. Acho sempre que nesses sítios ficamos reduzidos a uma mesinha de cabeceira, um roupeiro, um colchão mais ou menos confortável e uma almofada. Em casa, também pode ser só isso (um quarto), mas com a parte boa de ter a nossa vida lá dentro. O conforto. E uma janela com mar lá dentro.

Digo mais: se eu soubesse quando ia respirar pela última vez, preferia não estar sozinha. Teria alguém de quem gostasse e que gostasse de mim ao meu lado. E por mais dúvidas que tenha sobre este ponto – porque percebo que seja um egoísmo impormos a nossa morte a quem vai continuar a sofrer com ela –, não posso dizer que antes queria morrer sozinha. Se soubesse que ia morrer.

Como muitas outras pessoas que conheço, gostava de morrer a dormir, sem dor, velhinha, sem ter de gastar as minhas últimas forças a travar uma luta, qualquer que ela fosse: por um direito ou contra uma doença incapacitante. Ou então depressa. Sempre sem me aperceber que tinha chegado a hora. Caía para o lado e fechava os olhos. Não haveria dramas, nem acidentes aparatosos ou incêndios trágicos. Era simples.

Não morreria de noite (mais uma contradição para quem gostava de morrer a dormir) nem na rua no meio de estranhos, nem sequer a comer ou a tomar banho. E não estaria zangada com ninguém. Também não precisaria de me despedir e não queria deixar dívidas. Bem vistas as coisas, teria tempo para resolver todas as pendências da vida. E tudo isto tem tanto de sonhador como de improvável. Parece um filme asséptico.
Preferia viver de mais do que de menos, embora isso pouco tenha a ver com o modo como se morre. É mais uma questão de como se vive o tempo que se tem pela frente.

É um exercício curioso reflectir sobre como gostávamos que fosse o exacto momento da nossa morte – independentemente de convicções religiosas ou da falta delas. Espero que alguns dos 229 deputados tenham pensado nisso quando votaram contra ou a favor dos quatro projectos de lei que foram chumbados no Parlamento esta semana. Alguém se imaginou no momento da sua própria morte? E como era? Onde era? Quem estava lá?

Se eu pudesse escolher como morrer, era simples. Era uma privilegiada. Mas isto não tem nada a ver com a questão política da eutanásia. Nem com suicídio.

IN "PÚBLICO"
31/05/18


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