.
IN "PÚBLICO"
31/05/18
.
Se eu pudesse escolher
o dia da minha morte
Preferia viver de mais do que de menos, embora isso pouco tenha a ver com o modo como se morre.
Se eu pudesse escolher o dia da minha morte, escolhia, provavelmente,
o dia do meu aniversário. Mais vale que sofram por mim uma vez a cada
12 meses do que duas e assim ficava tudo concentrado no fim do ano: 31
de Dezembro. Além disso, parece-me uma data perfeita para fechar ciclos.
Mas
se eu pudesse escolher o dia da minha morte, o que queria mesmo era que
houvesse uma trovoada. Seca. Daquelas que riscam o céu, fazem tremer a
terra a às vezes até fazem estalar os ouvidos com o estrondo. Podia
haver uns pingos de chuva, poucos e grossos, só para se sentir o cheiro a
terra molhada, mas nada de sol, nem excesso de frio. Eu sei que não há
trovoadas secas em Dezembro, mas isto de pensar no dia em que queremos
morrer não tem nada de racional.
Gostava de estar ao pé do mar, porque apesar de ter nascido muito
longe dele, faz parte do meu dia-a-dia, da minha viagem para o trabalho,
da minha varanda, das corridas e passeios e das férias. Mar português,
claro, porque se eu pudesse escolher não morreria noutra língua,
independentemente de poder ser feliz no resto do mundo e de gostar muito
de viajar e de conhecer sítios novos.
Também preferia que fosse em casa do que num hospital ou num lar.
Acho sempre que nesses sítios ficamos reduzidos a uma mesinha de
cabeceira, um roupeiro, um colchão mais ou menos confortável e uma
almofada. Em casa, também pode ser só isso (um quarto), mas com a parte
boa de ter a nossa vida lá dentro. O conforto. E uma janela com mar lá
dentro.
Digo mais: se eu soubesse quando ia respirar pela última vez,
preferia não estar sozinha. Teria alguém de quem gostasse e que gostasse
de mim ao meu lado. E por mais dúvidas que tenha sobre este ponto –
porque percebo que seja um egoísmo impormos a nossa morte a quem vai
continuar a sofrer com ela –, não posso dizer que antes queria morrer
sozinha. Se soubesse que ia morrer.
Como muitas outras pessoas que
conheço, gostava de morrer a dormir, sem dor, velhinha, sem ter de
gastar as minhas últimas forças a travar uma luta, qualquer que ela
fosse: por um direito ou contra uma doença incapacitante. Ou então
depressa. Sempre sem me aperceber que tinha chegado a hora. Caía para o
lado e fechava os olhos. Não haveria dramas, nem acidentes aparatosos ou
incêndios trágicos. Era simples.
Não morreria de noite (mais uma
contradição para quem gostava de morrer a dormir) nem na rua no meio de
estranhos, nem sequer a comer ou a tomar banho. E não estaria zangada
com ninguém. Também não precisaria de me despedir e não queria deixar
dívidas. Bem vistas as coisas, teria tempo para resolver todas as
pendências da vida. E tudo isto tem tanto de sonhador como de
improvável. Parece um filme asséptico.
Preferia viver de mais do que de menos, embora isso pouco tenha a ver
com o modo como se morre. É mais uma questão de como se vive o tempo
que se tem pela frente.
É um exercício curioso reflectir sobre como gostávamos que fosse o
exacto momento da nossa morte – independentemente de convicções
religiosas ou da falta delas. Espero que alguns dos 229 deputados tenham
pensado nisso quando votaram contra ou a favor dos quatro projectos de
lei que foram chumbados no Parlamento esta semana. Alguém se imaginou no momento da sua própria morte? E como era? Onde era? Quem estava lá?
Se
eu pudesse escolher como morrer, era simples. Era uma privilegiada. Mas
isto não tem nada a ver com a questão política da eutanásia. Nem com
suicídio.
IN "PÚBLICO"
31/05/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário