A cena do ódio
Esse universo de rendas sociais, reguladas e acessíveis ocupa
hoje o lugar que a Reforma Agrária desempenhou no século passado: a
esquerda acredita que é aí que fará a sua sementeira de votos
1. Não há um dia em que não se descubra mais uma
caso dramático relacionado com o mercado de arrendamento. Temos de tudo:
os adultos que sofrem por passar do Chiado para os Olivais ou de Campo
de Ourique para Campolide. Os jovens que dizem que não conseguem alugar
uma casa no centro do Porto, sendo certo que antes também não alugavam
aí casa alguma porque o centro do Porto era a versão portuguesa das
cidades-fantasma do velho Oeste. O casal idoso que não sai da casa no
centro da capital porque ali nasceu o seu filho que por sinal está
emigrado, logo vivendo a milhares de quilómetros do solo musealizado
pelo seu nascimento…
Em resumo, é consensual que vivemos uma nunca vista crise da habitação e que, claro, o Estado vai ter de intervir.
Na
verdade, pela primeira vez em muitas décadas, os portugueses podem
aspirar a alugar uma casa. Recordo que a falta de casas para alugar
criou em Portugal um estado civil que creio único no mundo: os
amarrados pelo empréstimo da casa. Ou seja pessoas divorciadas de facto
mas que continuavam a viver na mesma casa porque literalmente não havia
casas para alugar. Não era não haver em Benfica ou o centro do Porto
estar ocupado por turistas. Era não haver uma casa para alugar em parte
alguma e assim os dois membros do casal que já tinha deixado de o ser,
sem dinheiro suficiente para darem de entrada para a aquisição de um
apartamento para cada um, eram obrigados a arrastar-se numa
invariavelmente desgastante conjugalidade imobiliária. E será que já
ninguém se lembra da popular burla dos anos 70 em que se pagava a umas
misteriosas agências imobiliárias uma verba exorbitante unicamente para
se conseguir ir ver um andar que estaria para alugar num local nunca
identificado? Como é óbvio na data marcada para a ida ao andar apenas
compareciam no local do encontro os ansiosos e burlados candidatos a
inquilinos.
Durante décadas e décadas sair da casa dos pais
implicou comprar uma casa pois não só não havia casas para alugar como
as raríssimas que apareciam tinham rendas proibitivas. E não eram
proibitivas apenas para os jovens: eram inacessíveis para adultos com
carreiras mais que sólidas.
Oficialmente a legislação protegia os
inquilinos. Na prática não existiam novos inquilinos porque não se
faziam novos contratos de arrendamento. Os senhorios esperavam que os
inquilinos morressem para se desembaraçarem das casas. As cidades
degradaram-se e envelheceram (Lisboa e Porto estão à cabeça da lista das
cidades da União Europeia que mais se despovoaram entre 1999 e 2005)
enquanto nas periferias cresciam urbanizações habitadas por casais que
já não eram obrigados a amar-se para sempre mas que para terem uma casa
contraíam hipotecas para toda a vida: o crédito à habitação unia de
forma mais inflexível que Deus.
Por onde andavam nesse tempo
aqueles que agora não cessam de denunciar a gentrificação das cidades? A
falta de casas para alugar? As rendas altas?… Certamente que a olhar
para outro lado que é como quem diz para outras causas.
Aquilo que
está subjacente à histeria em torno da dita crise da habitação é o
velho horror ao mercado. E é também o ódio de classe da oligarquia
estatista a tudo e a todos que procuram obter rendimentos que não passem
pelo crivo dos subsídios, dos apoios e dos programas propagandeados por
juntas de freguesia, câmaras, gabinetes, institutos, linhas de apoio…
Afinal,
mais do que um negócio que gera lucros imensos para meia dúzia de
proprietários, o arrendamento é em Portugal uma espécie de complemento
de rendimento daquilo a que com notória megalomania chamamos classe
média. Não por acaso é graças à renda de uma casa ou loja adquirida com
poupanças de vários anos que em muitos casos se conseguem arredondar as
reformas e assim pagar as prestações de lares ou os serviços de quem vai
a casa tratar dos mais velhos. E quantos daqueles que se confrontaram
com um divórcio, um despedimento ou uma rescisão evitaram o
empobrecimento tantas vezes inerente a essas tempestades da vida
investindo o montante das partilhas ou das indemnizações na compra de
uma casa que em seguida arrendaram?
Um estudo recente feito por uma plataforma de alojamento traçou um perfil dos senhorios portugueses:
mais de metade dos inquiridos (60%) declarou ter apenas uma propriedade
para arrendamento. Aliás só 2% declarava ter mais de 15 casas para
arrendar.
É este espírito individualista da poupança do pequeno
investidor que irrita a esquerda e a faz mostrar as eternas garras
controleiras: requisições forçadas de casas devolutas como o PS propõe
agora na sua Lei de Bases da Habitação? Já tivemos: em 1914,
instituiu-se a obrigação penal de arrendar casas devolutas e em 1975 não
só se legalizaram as ocupações de casas, como se obrigou os respectivos
proprietários a celebrarem contratos de arrendamento com os ocupantes.
(Em 2018, a possibilidade de requisição forçada de casas devolutas
defendida pelo PS acontece para mais num país envelhecido em que muitas
casas devolutas são propriedade de velhos que regressaram às suas
aldeias ou estão em lares).
Proibição dos despejos como o PCP e o
BE reivindicam? Durante mais de um século, de 1910 a 2012, os senhorios
demoravam anos até conseguirem rescindir o contrato celebrado com um
inquilino mesmo que este não pagasse renda há largo tempo: há quem não tenha pago renda durante 18 anos e mesmo assim não percebesse a razão de ser do despejo!
Como
é óbvio boa parte das propostas agora apresentadas para resolver a
propalada crise da habitação terá como resultado na melhor das hipóteses
o destino de folclórica inutilidade protagonizado invariavelmente pela
legislação que ao longos dos anos nos tem sido apresentada como a
solução para os dramas gerados pelo mercado desregulado. Nos anos 70, os
mesmos sectores políticos que agora apelam a uma intervenção estatal na
habitação obstinaram-se em regular e intervir no sector alimentar,
onde, diziam, mandavam os intermediários. A solução estava, garantiam,
nas cooperativas de consumo e nos preços tabelados. O governo de
Marcello Caetano até concebeu uns barracos da Junta Nacional das Frutas
onde se vendiam legumes e frutas a preços tabelados. O resultado de
tanto combate aos intermediários e à especulação foi o que se sabe: os
consumidores rumaram para os supermercados enquanto as prateleiras das
cooperativas de consumo iam ficando vazias e os postos da Junta Nacional
das Frutas ganhavam ferrugem nos passeios de várias cidades. Na pior
mas muito provável hipótese muitos proprietários face aos dislates das
propostas do PS e seus aliados começarão de novo a optar por não
arrendar as suas casas.
Mas a racionalidade não interessa. O que
interessa é o potencial de controlo político que cada intervenção
estatal comporta. E no caso da habitação esse potencial é enorme. Tanta
declaração de rendimento para ser passada e confirmada. Tanto sociólogo a
dizer “os nossos bairros” para explorar o ressentimento. Tanta mediador
cultural para servir de interlocutor. Tanta empena mal impermeabilizada
mas cobertinha por murais artísticos.
Esse universo anunciado de
rendas sociais, rendas reguladas, rendas acessíveis e rendas
condicionadas ocupa hoje o lugar que a Reforma Agrária desempenhou no
século passado: a esquerda acredita que é ali que fará a sua sementeira
de votos.
2. Se António Costa e Rui Rio querem
avançar para a regionalização devem assumi-lo e convocar novo referendo.
O que não é aceitável é que sem estarem legitimados pelo voto – António
Costa perdeu as legislativas e Rui Rio não as disputou – avancem para
uma regionalização na secretaria. Ou melhor, na cascata de secretarias
implícitas ao ponto II da “Declaração conjunta sobre descentralização” subscrita por aqueles dois líderes.
O
dito ponto II intitula-se “Reforma da organização subnacional do
Estado” e nele é anunciada a constituição de uma “Comissão Independente
para a Descentralização” a ser constituída por “seis personalidades de
reconhecida competência e mérito científico, designadas pela Assembleia
da República, tal como o seu Coordenador”.
Segundo a declaração
subscrita pelo PS e PSD essa Comissão debruçar-se-á “sobre estudos
aprofundados a executar por Universidades com reconhecidas competências
académicas na investigação sobre as políticas públicas e a organização e
funções do Estado”. Portanto entre Abril de 2018 e meados de de 2019,
as Universidades – quais? como e por quem serão escolhidas? – têm de
executar “estudos aprofundados” e apresentá-los à Comissão Independente
para a Descentralização, ainda não constituída, mas que após o estudo
dos estudos aprofundados tem até Julho de 2019 para apresentar
“anteprojectos de diplomas que serão referencial para iniciativas
legislativas subsequentes.”
A par da análise dos “estudos
aprofundados” a serem realizados pelas Universidades – ou enquanto
espera por eles pois por muito copy paste e conversa de encher sobre o
combate às assimetrias e desigualdades do território, os estudos ainda
podem demorar uns meses – a Comissão ouvirá as “Áreas Metropolitanas, as
Comunidades Intermunicipais e as Comissões de Coordenação e
Desenvolvimento Regional”. Ou seja a Comissão Independente vai ouvir os
grandes interessados na criação de mais uma estrutura administrativa no
país: os burocratas que obviamente vão defender mais uma estrutura a
juntar às Áreas Metropolitanas, às Comunidades Intermunicipais e às
Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional já existentes. Ouvir
o povo nesta matéria é que nunca mais!!
Um dia avaliaremos a
perversão subjacente à imposição desta linguagem desfocada em que o
facto real não pode ser referido directamente A regionalização muito
adequadamente passou a descentralização (tal como a eutanásia se
transformou em morte digna ou assistida e as barrigas de aluguer em
maternidade de substituição) mas ou os portugueses acordam para a
mistificação subjacente à fantochada desta declaração conjunta ou
acordamos em Julho de 2019 com uma regionalização feita nos bastidores
pelos caciques partidários.
IN "OBSERVADOR"
22/04/18
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