HOJE NA
"SÁBADO"
"Actualmente os bombeiros
não cumprem os requisitos"
Os últimos 15 anos, depois dos incêndios de 2003, foram uma oportunidade
perdida, diz Joaquim Sande Silva, especialista em Ecologia do Fogo e
membro da comissão técnica (CT) nomeada pelo parlamento para redigir os
relatórios sobre os incêndios de 2017 (112 mortos). O documento sobre os
eventos de Outubro foi apresentado na terça-feira, 20 de Março.
Ficou surpreendido com o que não se fez nos quatro meses a seguir à tragédia de Pedrógão?
Houve
muito pouco tempo para fazer as mudanças estruturais. Não estaria à
espera que, num curto espaço de tempo, houvesse a possibilidade de
alterar a capacidade de mobilização de meios. O que aconteceu em Outubro
não foi por falta de meios ou da flexibilização na estrutura de
combate. Houve falta de sistemas de alerta às pessoas.
As conclusões sobre os motivos da tragédia de Outubro são semelhantes às de Pedrógão?
Há
uma série de coisas em comum. Uma foi o carácter extraordinário das
condições meteorológicas. Foram situações que não são usuais e deram
origem a comportamentos do fogo também fora do comum. No incêndio de
Outubro morreram menos pessoas, mas, ao nível de infra-estruturas e de
área queimada, foi um evento bastante mais destruidor.
Nos dias anteriores, falava-se na possibilidade de chuva. As pessoas fizeram queimadas por isso.
Houve
mais queimadas do que deveria haver, mas a proporção relativamente ao
universo de causas não foi tão superior como esperávamos.
.
Daqui decorrem
ensinamentos: nos serviços responsáveis pela transmissão deste tipo de
informação, não se deve dar azo a que as pessoas tomem como garantido
que têm condições para fazer queimadas. Tendo em conta a extrema secura
dos combustíveis a 15 de Outubro, bastava haver um pequeno erro nas
previsões - como aconteceu - para que as condições de propagação do fogo
fossem as que foram.
Desde Junho, não se aprendeu a comunicar de modo célere?
Não,
não houve mudanças significativas entre Junho e Outubro. E há muito a
fazer. Tivemos agora um exemplo, se calhar pela negativa, mas que em
termos de comunicação parece ter funcionado: o alerta para a limpeza das
faixas junto às infra-estruturas chegou a toda a gente. No caso dos
incêndios, trata-se de comunicações em cima da hora, com SMS, redes
sociais, rádio, televisão. Em Outubro, houve uma desvalorização. O
grande enfoque foi dado à passagem do furacão Ofélia pelos Açores,
quando nos Açores não aconteceu absolutamente nada.
E
isso deve-se a quê? No relatório de Pedrógão, a CT fazia referência à
necessidade de maior profissionalização versus as nomeações políticas na
Protecção Civil.
Sim, é isso que tem acontecido. Mas é só
uma parte do problema. O sistema tem colocado sob a alçada das mesmas
entidades os incêndios urbanos (com características e abordagem
diferentes) e os florestais.
Tiago Oliveira, que preside
à Unidade de Missão, diz que é necessária maior profissionalização,
nomeadamente com técnicos para avaliar o comportamento do fogo, que não
existiam.
Não existia e vai demorar bastante tempo a
existir. Técnicos com este conhecimento demoram tempo a formar-se. A
Catalunha, que é apenas uma região espanhola, tem no seu serviço 50
analistas de fogo. Cinquenta. É um completo paradoxo: somos o país da
Europa com as piores estatísticas em termos de incêndios florestais e o
que está mais mal preparado em termos técnicos. Parámos ou retrocedemos
desde 2003, quando 2003 e 2005 deveriam ter sido o ponto de arranque de
um processo de formação e criação de um corpo técnico capaz de fazer
esta análise.
O que falhou nestes 15 anos foi a falta de vontade política?
Houve
um plano nacional de defesa da floresta contra incêndios produzido
entre 2004 e 2005 e que o governo que tomou posse a seguir, o de José
Sócrates, reanalisou e apenas foi retido o que causava menos
inconvenientes políticos.
Quais foram as principais causas dos incêndios de Outubro?
É
bom separar em três tipos de factores. Sem haver uma ignição inicial
(um fósforo, um isqueiro) não existe início de incêndio. Depois, os
factores relacionados com a propagação do fogo: se não houver
combustíveis com características que facilitem a propagação do fogo, ele
também não se propaga. E depois os factores relacionados com o combate.
Os bombeiros são o último elo da cadeia. No que toca a ignições, não
vimos um tipo de causas (nomeadamente as queimadas) que fosse mais
elevado do que o normal. Talvez o que tenha escapado à normalidade tenha
sido a quantidade de reacendimentos, que tem a ver com o combate. É
porque alguma coisa falhou.
Aí, a profissionalização dos bombeiros talvez fosse essencial?
Nem
é falta de conhecimento técnico. São coisas tão básicas como optarem
por uma mangueira ou ferramenta manual. Nos bombeiros voluntários nunca
se assumiu que também lhes cabe fazerem o trabalho com ferramentas
manuais. Faz toda a diferença despejar água sobre um tronco que está a
arder e ir embora e daí a um bocado está a arder novamente ou fazer um
trabalho mais cuidado com enxadas.
O MAI, Eduardo
Cabrita, tem repetido que os bombeiros são o centro da estrutura de
protecção civil. Está a dizer que se trata a necessidade de maior
profissionalização com luvas de pelica?
Sim, mas isso tem
sido uma constante ao longos dos anos. Os bombeiros em Portugal são uma
espécie de vaca sagrada. E em vez de se fazer uma análise bem objectiva
das fragilidades e virtualidades, optam por não afrontar. Quem faz
combate a incêndios florestais deve ter competências técnicas, deve ser
avaliado, sejam bombeiros ou outra estrutura. Actualmente, os bombeiros
não cumprem os requisitos. Tenho duvidas que seja através da estrutura
de bombeiros que existem que vamos encontrar a solução para os incêndios
florestais.
Como avalia as mudanças anunciadas e efectivadas? Estamos a entrar finalmente nos carris?
Sinceramente
acho que não. Sou conhecido por ser um pouco pessimista. Não me parece
que se vá conseguir mudar grande coisa nem ao nível do combate, nem da
prevenção estrutural. Queria deixar claro que esta histeria nacional à
volta da limpeza junto das infra-estruturas - ao contrário do que disse o
Ministro da Agricultura, que seria a maior limpeza dos últimos 800
anos... - eu classificá-la-ia como um dos maiores disparates dos últimos
800 anos. A legislação como existe está errada, não tem fundamentação
científica nenhuma. Há pessoas a deitarem floresta abaixo e agravando o
problema porque depois vamos ter combustíveis com piores
características.
* No rescaldo dos incêndios de 2017 nós, que não somos especialistas, afirmámos nesta páginas que a prevenção tem de ser planeada e estruturada, que é imprescindível a profissionalização do maior número de bombeiros voluntários possível e o fim dos negócios manhosos à volta do fogo. Tudo isto é possível se houver política em vez de pulhítica.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário