ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"
As vida dos filhos de padres em Portugal
Alguns tratam os pais por padrinhos. Todos, mesmo os que são perfilhados, vivem na clandestinidade. Depois de o pároco Giselo Andrade assumir a paternidade em público, colegas revelam como levam uma vida dupla para conciliar os papéis.
Dentro do carro, estacionado junto ao emprego dela, o diálogo antevia-se
tenso. Há dias que a mulher católica o preparava: "Pode acontecer
alguma coisa…", ia lançando. Faltava a confirmação, que viria naquele
final de tarde de Primavera. Estava grávida. Sem saber qual seria a
resposta dele, a paroquiana comunicou-lhe, a medo, o primeiro mês de
gestação. O futuro pai sorriu, abraçou-a. Era uma boa notícia para o
homem de meia-idade, divertido e eloquente, que há muito desejava em
segredo a paternidade. Nem o facto de tal colidir com as suas funções -
as de padre (que em latim também quer dizer pai) - o intimidava. "Outro,
no meu lugar, ficaria aterrado, mas eu fiquei feliz", recorda o próprio
à SÁBADO, sob o nome fictício de Paulo. Seria um acto
único - um filho -, não mais: "Se tal acontecesse confirmaria as dúvidas
de concubinato que assolam as cabeças dos nossos bispos."
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Paulo
conhecera-a anos antes, no grupo de jovens da paróquia, sem que
houvesse aproximação afectiva. Entretanto afastaram-se e
reaproximaram-se tempos depois através do trabalho pastoral. A amizade
consolidou-se e o envolvimento aconteceu. Mas estaria o padre preparado
para o terramoto social que aí vinha? "É óbvio que me preocupei com as
consequências, que seriam dramáticas."
Foram tempos difíceis - e
continuam a ser, numa altura em que o colega Giselo Andrade enfrenta uma
situação idêntica. Pai de uma bebé, nascida a 18 de Agosto passado, o
nome do sacerdote de Nossa Senhora do Monte, na Madeira, saltou para os
jornais e reacendeu o debate em torno do fim do voto de castidade e da
abolição do celibato obrigatório. Será que os padres católicos podem
começar a constituir família com o aval do Vaticano? É certo que o fazem
há muito, com vidas duplas em que o segredo é imposto aos filhos e o
estigma persegue as mães solteiras com quem se envolveram.
"Jogo de cintura" para conciliar
O pároco Giselo
terá sido dos primeiros a assumir a situação em público e a manter-se em
funções sob a aprovação do bispo do Funchal (ainda que, à SÁBADO,
a diocese se limite a dizer que não comenta). Paulo abriu timidamente
caminho: "Imagino a pressão social e eclesial que o padre Giselo está a
sofrer neste momento." Paulo viria a sofrer outras. No dia do parto, há
menos de cinco anos, ele e a progenitora seguiram para um hospital da
zona centro, distante da paróquia do Norte onde o sacerdote estava
colocado. O pai assistiu embevecido ao nascimento do filho e perfilhou-o
sem hesitações, porque jamais tencionava fazê-lo mediante uma ordem do
tribunal. Nos primeiros meses, conciliou com "jogo de cintura", diz, o
novo papel com o de pároco experiente. "Para que pudesse prestar o meu
contributo às comunidades, mas também estivesse presente no crescimento
da criança."
Mas este aparente estado de graça não duraria
muito. O bispo da diocese acabou por saber, confrontou-o e as
retaliações começaram. Se Paulo queria continuar na vida eclesiástica,
teria de fazer escolhas, que implicariam, porventura, a mudança de
paróquia. Longe do filho e também dos fiéis que se mantiveram leais a
ele, Paulo resistiu à transferência, enfrentou sozinho a distância da
hierarquia e de alguns pares. "Fui posto de lado pelos superiores. Tudo
quanto de bom pudesse ter feito, desapareceu. Há colegas que olham para
mim como se tivesse uma doença rara e contagiosa. E depois há aqueles
bons colegas, amigos, que compreendem e apoiam dentro das suas
possibilidades." Podia ter virado costas e optado pela dispensa, ou
encoberto a situação, mas preferiu ficar pela zona, sem ser dispensado.
"Sinto um vazio e desilusão enormes. Deus compensa, mas os homens nada
reconhecem. E a hierarquia da Igreja não reconhece absolutamente nada."
Desde
então, Paulo vive na precariedade. Tem uma remuneração variável que não
paga as contas, tão-pouco cobre as despesas de criar uma criança sem
viver maritalmente com a mãe dela. Celebra missas quando calha, mas não
perde a fé. Isso nunca. A prová-lo, pediu a um colega que baptizasse o
filho. "Não podia deixar que ficasse sem o baptismo. Quero incutir-lhe
os mesmos valores morais que recebi, como o respeito pelo próximo." Tem
agora mais tempo e paciência para o educar - e recebe as compensações:
por exemplo, ouvi-lo dizer as primeiras palavras. "O momento mais feliz
da paternidade foi quando ele me chamou, pela primeira vez, de 'pai'.
Tinha 15 meses." Quase renegado pela Igreja, a viver um dia de cada vez,
o pároco tenciona revelar a verdade ao filho. "Terá de saber." Um dia,
com calma, contar-lhe-á tudo. "Talvez quando tiver 10 anos."
Vincent
Doyle já não era nenhuma criança quando soube que o falecido padrinho
J.J. era, afinal, o seu pai. Tinha 28 anos quando juntou as peças, pelas
cartas que J.J. deixara à mãe: era filho de um padre católico. Sendo
psicoterapeuta, decidiu ajudar outros em circunstâncias idênticas. Três
anos depois da descoberta, fundou em 2014 a associação Coping
International na Irlanda. Revelou tudo isto em entrevista à SÁBADO, publicada a 12 de Outubro passado.
Agora o fundador retoma o tema, a pedido da SÁBADO,
na perspectiva dos filhos de sacerdotes portugueses que o procuram.
Sondou vários sobre se quereriam prestar um depoimento, mesmo sob
anonimato, mas nenhum aceitou - o medo e o silêncio prevalecem. "O
sigilo é imposto enquanto a criança ainda está no útero. A ciência e a
psicologia concordam com a tese de que a criança experimenta um pouco do
que a mãe sente durante a gravidez", diz.
Ajuda da comunidade online
Nestes
casos, quer dizer sofrimento profundo, que mais tarde se reflecte de
múltiplas formas. "Este bullying dura toda a vida. A ansiedade e as
repercussões psicológicas são muitas: insónias, paranóia, depressão",
acrescenta o responsável. Durante a noite, alguns filhos de padres
digitam o link copinginternational.com em busca de apoio
online. Vincent registou 3.320 visitas de Portugal, desde Dezembro de
2014 até à data, sendo que a maioria do número de acessos aconteceu
antes de o site ganhar visibilidade pública em Agosto de 2017.
"Significa que um número considerável de pessoas em Portugal procura
ajuda relacionada com este assunto há anos, chegando ao nosso site. A
questão que gostaria de colocar à Conferência Episcopal Portuguesa [CEP]
é esta: porque é que a Coping recebeu mais de 3.000 visitas de pessoas
em Portugal antes do nosso comunicado de imprensa?"
A CEP é a
entidade religiosa que reúne a comunidade de bispos e responde
genericamente às questões da SÁBADO, sem abordar o tema do bullying
dos padres-pais e dos filhos destes, inserido em duas perguntas. Não se
perspectivam mudanças, reafirma o padre Manuel Barbosa (porta-voz da
CEP): "Mantém-se a disciplina actual da Igreja no que respeita ao
celibato dos sacerdotes católicos, em fidelidade, sem vida dupla.
Segundo as orientações da Igreja, não está no horizonte a decisão pelo
celibato facultativo."
O Papa Francisco não parecia ter tantas
certezas quando, em Maio de 2014, falou sobre o celibato religioso em
conferência de imprensa, durante a viagem de regresso a Roma procedente
da Terra Santa. "Porque o celibato não é um dogma de fé; é uma regra de
vida que eu aprecio muito e creio que é um dom para a Igreja. Não sendo
um dogma de fé, temos sempre a porta aberta: neste momento, não temos em
programa falar disso, pelo menos para já." Em Março de 2017, o Sumo
Pontífice admitia ao jornal alemão Die Zeit que "o celibato voluntário
não é solução"; não obstante, os casados católicos de "fé e virtude
excepcionais" poderiam, eventualmente, tornar-se membros do clero. Mas
não seria permitido aos padres solteiros, ordenados, casarem-se depois.
Na
prática, a Igreja trava um jogo de forças. De um lado, a linha
conservadora tenta impedir a abolição do celibato. Do outro, os
progressistas como Anselmo Borges acham inaceitável que os filhos de
padres continuem a ser tratados por "sobrinhos" ou "afilhados". "As
crianças têm direito à sua identidade e a mãe não pode ficar sozinha e
excluída", comenta à SÁBADO. O padre, professor universitário e teólogo
acredita que é uma questão de tempo até o celibato se tornar
facultativo. "O Papa Francisco tem o problema entre mãos e estou
convicto de que, se não vai acabar directamente com a lei, fá-lo-á
indirectamente, permitindo a ordenação de homens casados." Mais
cauteloso nas palavras, o representante da CEP dá a entender que, caso
se repitam situações como a de Giselo Andrade - e há inúmeras, segundo
apurou a SÁBADO -, terão de ser analisadas isoladamente. "A haver outros
casos semelhantes, é sempre no âmbito diocesano que o processo de
discernimento deve acontecer, tendo em conta o bem da criança e da mãe."
Enquanto permanece o dilema, o padre Ernesto Lúcio, 44 anos,
decide tirar um ano sabático. A pausa para reflexão deve-se à polémica
em dose dupla: primeiro devido ao alegado desfalque que o tornou notícia
("Padre suspeito de tirar 1,5 milhões à Cáritas", lê-se na edição do Correio da Manhã de 14 de Novembro passado); depois porque, em simultâneo, foi tornado público que tinha duas filhas (a mais velha de 14 anos).
No início deste mês, o pároco de várias freguesias de Vila Real deixou
de celebrar missas (embora não pense deixar o sacerdócio, que exerce há
21 anos), depois de chamado ao bispo da diocese para se justificar.
Sobre a queixa anónima de desvio de fundos, que deu entrada há três anos
no Ministério Público, mostrou-se de consciência tranquila: garantiu
que não cometera o crime e nem sequer fora constituído arguido. Quanto
às filhas não desmentiu, as provas eram irrefutáveis. Duas certidões de
nascimento atestavam que perfilhara as crianças. "Foi o mais frontal,
corajoso e sério que podia ser, dentro das limitações", enaltece à SÁBADO um amigo, que pede o anonimato.
Padres rodeados de filhos
Pecava,
redimia-se em retiros no Luso, reincidia - e assim sucessivamente até
perfilhar 13 filhos de cinco mulheres. Fora os ilegítimos que o
perpetuaram pela descendência. Segundo as contas dos locais de
Condeixa-a-Nova, publicadas na biografia Padre-Boi Não é Lenda, da
autoria de Manuel Rodrigues dos Santos e editado em 1990 pela autarquia,
chegaram a atribuir-lhe 35 filhos. "O pescoço torcia-se-lhe em meia
volta para seguir o andar ondulante das moças e comentar [...]: 'Que
bonita cachopa ali vai!'", lê-se no livro.
No final do século
XIX, João Augusto Antunes, vulgo padre-boi porque cedia ao pecado da
gula, era uma figura proeminente da terra perto de Coimbra. Com quase
dois metros de altura, 120 quilos e uma farta cabeleira, não perdia uma
oportunidade de aproximação ao sexo oposto. "Amo muito a santa Igreja,
mas amo também os meus filhos e as suas mães!"
Os locais
perdoavam-lhe os excessos, porque o padre tinha várias virtudes: era um
conversador bem-humorado; fazia amizades com facilidade (ficou amigo do
Rei D. Carlos, quando o monarca se instalava num solar da vila, a Casa
Ramalho); e, sobretudo, destacava-se como mecenas, gastando a fortuna em
projectos culturais como o orfeão (a sociedade recreativa
notabilizou-se no primeiro quartel do século XX com o epíteto de
"rouxinóis de Condeixa" pelas vozes afinadas do coro) e a escola de
desenho industrial (que funcionou entre 1914 e 1927). Também foi erguida
por ele a capelinha à Senhora das Dores, em 1906, de quem era devoto. É
lá que o neto João Azevedo, 54 anos, acende uma vela em sua homenagem.
Do
avô paterno herdou o primeiro nome, a derivação da alcunha (tratam-no
por João Bezerro) e a queda para as artes. É pintor de cerâmica, há 12
anos que canta no orfeão e considera-se um bom garfo. Tem precisamente
um século de diferença do ancestral - nasceram ambos no ano de 63. João
começa por dizer à SÁBADO que é a favor do celibato
facultativo, porque pelo obrigatório "se calhar perdem-se grandes
padres". Contudo, o pai de João (já falecido) evitava tocar no assunto.
"Não era um dos 13 perfilhados e naquela altura era difícil falar por
causa do estigma."
De Coimbra para cima, sobretudo nas Beiras, as
histórias de padres carregados de filhos repetiam-se. Tanto assim era
que, já no século XVI, D. Frei Bartolomeu dos Mártires defendia o fim
celibato no Concílio de Trento (1562-1563). Saltem barrosani, proclamava
em latim, como quem diz "pelo menos no Barroso" poupai os padres.
Porque os párocos beirões andavam a cavalo na época, enfrentavam o frio e
precisavam de conforto familiar.
A filha mistério
Numa
paróquia da Beira Alta, terra de origem de Abílio Louro de Carvalho,
este aposentado do ensino secundário de 66 anos recorda-se de ouvir as
histórias da família numerosa do padre. "Dos nove filhos que a mulher
com quem vivia lhe deu, sempre a mesma e na mesma paróquia, conheci
dois. Conheciam o pai como tal, mas tratavam-no como padrinho por
obrigação."
O relato de Abílio é corroborado por outro de
Serafim Sousa, 79 anos, presidente da assembleia-geral da Fraternitas
(associação de padres casados, que não exercem funções pastorais; e
conta com 22 anos de existência). Sendo um dos dirigentes, Serafim tem
conhecimento de várias situações de filhos de padres que os envolvidos
lhe confidenciam ou que sabe através do passa-palavra. Mas o caso mais
impressionante veio de um colega dos tempos do seminário de Vila Real. O
pároco que Serafim bem conhecia - até discursara na missa de estreia
dele, na década de 60 - tinha uma filha secreta, que perfilhara sem
ninguém saber. "Costumávamos fazer encontros de ex-seminaristas em
Lisboa e, num deles, em 1989, esse padre pediu-me que lhe desse boleia
até à zona da Estefânia", conta à SÁBADO.
Serafim
não percebeu logo o motivo da deslocação, mas ficou desconfiado. A
resposta veio após a morte do colega, que até ao fim da vida exerceu o
sacerdócio e foi vítima de um acidente vascular cerebral fulminante,
anos depois daquele episódio. "Entrou no carro e morreu imediatamente, a
viatura até bateu com a outra da frente. Tinha cerca de 60 anos."
Tempos mais tarde, um amigo de ambos, advogado, revelou-lhe o mistério: o
padre deixara o património à filha. "Só souberam que ele era o pai
daquela criança quando o testamento foi aberto."
O jornalista do Correio da Manhã especializado em religião,
Secundino Cunha, fez uma investigação exaustiva sobre as polémicas da
Igreja nos últimos 20 anos - na qual destaca a quebra do voto de
castidade. O livro de 255 páginas, lançado pela Saída de Emergência em
Abril passado, começa por contar o percurso de um padre que se tornou
pai em finais de 1996 e ficou conhecido pelo vício da heroína no ano
seguinte, mas conseguiu largar a toxicodependência e actualmente tem um
projecto pastoral na Suíça. Num outro capítulo, o autor relata mais um
caso polémico, de um pároco de 40 anos que se apaixonou por uma advogada
e abandonou a paróquia em 2002 quando ela engravidou.
* A abençoada e desprezível hipocrisia da igreja católica.
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