AZ
Quando fui ver o concerto dos Azeitonas já ia sem falsas expectativas em relação à tão desejada catarse. Foi dos concertos de que mais gostei na vida
Eu tenho um problema em relação a ir a concertos. Como estou demasiado
deformado pela proximidade (é essa a minha vida), estou logo à partida
arredado da possibilidade de comungar da catarse coletiva para que todos
os espetáculos, idealmente, tendem. Estou irremediavelmente por dentro.
Conheço os camarins, a parte de trás. É como entrar pelas traseiras de
um restaurante: não se deve. Há lixo amontoado, caixotes empilhados,
gente a fumar. É como a parte de trás dos eletrodomésticos, há coisas
que não é para ver. E isso acontece-me nos concertos. Conheço demasiado
bem o desgaste das montagens, as discussões, as coisas que correram mal
de tarde, a dificuldade que foi com a carrinha do material, as ribaltas a
interferirem com o áudio, os ruídos, o homem da luz pendurado em
escadotes a apontar focos, o do som a fazer a vida negra a toda a gente
com a calibragem do P.A., com Cds de demonstração da Roland. Em qualquer
sala de espetáculos deste país já sei onde é que a equipa jantou, sei
os dois pratos que estavam à disposição (o Road Manager andou de pessoa
em pessoa a pôr cruzinhas, filetes de pescada ou grelhada mista), olho
para os músicos e consigo intuir quem foi filetes, quem foi grelhada,
sei da correria, sei dos alertas (digestivos à parte). Sei da azáfama
dos convidados de última hora (afinal o primo vem com a namorada), da
impressão dos alinhamentos no escritório do teatro (vamos lá ver se há
impressora), as idas à casa de banho. Ainda nem o concerto começou e eu
lá sentadinho, espectador sabido e calejado por estas aviltantes
bolandas, a sofrer por empatia com tudo aquilo que os outros não vêm.
Tenho a alma ímpia, corrompida por estas andanças. Ainda nem o pano
subiu e já eu estou exaurido. “Each man kills the thing he loves”,
escreveu o Oscar Wilde, e eu necessariamente matei uma coisa que
adorava, que era ir a concertos. Agora imagine-se isto tudo, mas num
concerto com um reportório, na sua maioria, da minha própria autoria.
Não só conheço os meandros supramencionados, como também conheço os
caminhos escuros e obtusos por onde as canções andaram até repousaram no
ouvido do incauto espectador. Quando fui ver o concerto dos Azeitonas
na semana passada na Casa da Música, já ia sem falsas expectativas em
relação à tão desejada (porém irremediavelmente perdida) catarse. Ia
participar, mas ainda assim pedi ao Sarmento se me deixava ver o
concerto da frente. Foi dos concertos de que mais gostei na vida. As
razões afetivas, pelo facto de se tratar da banda da minha vida, e por
ter sido um orgulhoso membro por mais de 14 anos, quando muito concorrem
para o inverso. Em princípio, teria um olhar meramente analítico,
oposto ao olhar ingénuo, que é o que permite gostar de qualquer coisa.
Eu estava na primeira fila (o pior lugar para se ver concertos), sozinho
numa das pontas, e vibrei genuinamente com o concerto, como se não
conhecesse aquela malta de lado nenhum. Dei por mim a cantarolar aquelas
músicas como se não as conhecesse pelas traseiras. A maneira como elas
foram esquartejadas e modificadas, sem qualquer reverência pelas versões
originais, vai completamente contra aquilo que é o meu olhar obtuso,
quadradão, dogmático, em relação a estas matérias. Tenho a certeza que
eu seria uma voz antagónica, se ainda tivesse alguma dentro da banda.
Mas ainda bem que não tenho. Sempre andei à turra e à massa com o Salsa
para que ele não se pusesse com fantasias. Mas ainda bem que ele se pôs.
Foi outra banda, aquela que ouvi. Diferente em muitos aspetos. Melhor
que nunca. O Marlon e a Nena com uma segurança como eu nunca vi,
arranjos de uma exigência e de um requinte que nunca se vê ao vivo, pelo
menos que eu saiba. Por uma vez na vida, desde que me dediquei a esta,
pude ser mais uma entre as mais de mil almas que vibraram com o concerto
dos AZ na sala grande da Casa da Música, pequena de mais para o que ali
se viu e ouviu. Obrigado Salsa, Marlon e Nena, obrigado (mais uma vez),
AZ
IN "VISÃO"
07/12/17
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