Justiça popular do século XXI
O
que sucedeu em Coimbra e à porta dum local de diversão nocturna da
capital veio acabar com todas as ilusões do país tranquilo e de brandos
costumes que teimávamos em acreditar.
Já
vamos estando habituados a actos de violência e barbárie quase
quotidianos e mesmo o facto de nos entrarem porta dentro à hora do
jantar, aterrando em pleno prato, não nos tira o apetite nem nos
escandaliza ou indigna muito. É a perversidade dos actos repetidos que
nos deixa a médio prazo, imunes e indiferentes. Isso e a distância.
Ataques em escolas, em lugares de diversão ou de culto de forma
gratuita, eram peliculas Norte Americanas, transpostas para a realidade,
mercê da permissiva lei das armas. Já apenas nos provocava um encolher
de ombros passivo.
Mas a última semana veio pôr a nu algo que muitos sabiam, testemunhavam e
de que eram vitimas: Portugal não é imune a esta vaga de violência sem
medida e sem razão.
O que sucedeu em Coimbra e à porta dum local de diversão nocturna da
capital, veio acabar com todas as ilusões do país tranquilo e de brandos
costumes que teimávamos em acreditar. As cenas filmadas
amadoristicamente mostram não apenas uma violência extrema e uma total
ausência de respeito pelo ser humano – em ambos os casos as vítimas
continuaram a ser agredidas muito depois de se encontrarem caídas e
indefesas – como uma outra perversidade: a necessidade de tudo gravar,
de registar, de documentar e partilhar nas redes sociais. Esta febre que
nos transformou em proto jornalistas, proto realizadores, afasta-nos
cada vez mais do dever de cidadania, de humanismo e resume o nosso mundo
a um pequeno ecran que guardamos no bolso.
Repare-se no sucedido em Coimbra. Há gritos duma mulher que pede que se
chame a polícia, que se intervenha, que se acuda ao homem que continua a
ser espancado barbaramente. Passam minutos antes de se ver alguém
acorrer ao chamamento, a intervir. O mesmo sucede à porta da discoteca.
Poder-se-á argumentar que intervir é um risco, que nunca se sabe quando
os indivíduos estão ou não armados, que estamos perante gangs, que
afinal existem máfias a actuar em Portugal… E lá se vai o sonho do
jardim paradisíaco plantado à beira-mar.
Mas socorrer, retirar a vítima e protege-la se calhar não é um risco
assim tão grande, se calhar é apenas a nossa indiferença a falar mais
alto. Claro que, a documentação do acontecimento, a partilha de imagens
também é uma forma de intervenção e acaba por resultar por vezes numa
solução real e efectiva.
Mas isto levanta outras questões: estará a segurança e a justiça nas
mãos das partilhas e dos “likes”? Teremos um BigBrother facebookiano que
tudo vê, tudo relata, tudo partilha, comenta, julga , condena sem mover
nada mais que um dedo? Onde fica então a parte humana, a que intervém
de facto, a que está lá para o outro? E que dizer de instituições que
apenas actuam em reacção perante uma opinião pública ululante?
Casos de juízes que julgam ainda com base em Códigos do Séc. XIX e que
após várias vidas certamente arruinadas devido a sentenças proferida
acabam por ser alvo de inquérito, de discotecas que encerram portas após
mais duma trintena de queixas vãs e tantos outros, acabam por ser
resolvidos por pressão das redes sociais, dos media e da opinião
pública.
Mas o espaço público, a praça, não pode substituir-se às instituições!
* Presidente do Sindicato dos Funcionários do SEF
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
10/11/17
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