Olimpismo:
Manifesto para uma nova
consciência do Desporto
Émile
Durkheim (1858-1917), considerado um dos pais da sociologia,
questionava-se como é que, na era da modernidade, a sociedade podia
manter a sua integridade e coerência, quando os laços que mantinha com a
generalidade das instituições tradicionais estavam a ser postos em
causa com o surgimento de novas instituições. Ao fazê-lo, Durkheim
levantava a questão da “consciência coletiva” que entendia ser o
conjunto de caraterísticas e conhecimentos comuns de uma sociedade, que
fazem com que os indivíduos pensem e ajam de forma minimamente
semelhante.
O conceito durkheimiano de “consciência
coletiva” pode trazer um contributo para o desporto, espreitando para a
época em que Pierre de Coubertin (1863-1937), a partir de 1888, enquanto
líder do Movimento Olímpico (MO) assumia que, através da prática
desportiva, estava a estabelecer uma rutura com as tradicionais escolas
de ginástica organizada na Educação Física que, através do “mens sana in
corpore sano” do poeta romano Juvenal, caraterizava o pensamento da
época. E foi nesta lógica de mudança, de progresso, de inovação e de
transformação social que, em finais do século XIX, o Olimpismo surgiu a
desencadear uma nova consciência coletiva em matéria de atividades
físicas de carácter recreativo consubstanciada nos valores do desporto
para a educação, para a cultura e para a paz.
Ao contrário
daquilo que é entendido pelo senso comum, para além dos Jogos Olímpicos e
das medalhas olímpicas, o Olimpismo é uma filosofia de vida que coloca o
desporto ao serviço do desenvolvimento humano. Trata-se duma filosofia
social desenvolvida pelo fundador do Movimento Olímpico em finais do
séc. XIX, Barão Pierre de Coubertin (1863-1937), com um foco de
interesse não só em atletas de elite como também na restante população,
não só num curto período de tréguas mas para toda a vida, não só na
competição e na vitória mas também nos valores de participação e
cooperação, o desporto não só como uma atividade mas também como uma
ferramenta pedagógica com influência na personalidade individual e na
vida social.
Após cerca de cento e vinte anos da
institucionalização do MO moderno, deparamo-nos com dificuldades
inerentes à coerência entre a estrutura de princípios e valores do
Olimpismo relativamente às dinâmicas da diversidade cultural, económica e
política, nos mais diversos países e comunidades do Mundo, em que o
Olimpismo na sua diversidade nos surge como um projeto de transformação
sócio desportiva.
Muito embora o Olimpismo, segundo a Carta
Olímpica, seja uma das propriedades do Comité Olímpico Internacional
(COI), o conceito tem vindo a evoluir continuamente desde a sua
institucionalização em finais do século XIX. No tempo de Pierre de
Coubertin, suportado numa cultura de paz, o Olimpismo apoiava-se em três
pilares fundamentais: o desporto, a educação e a cultura. Hoje, podemos
dizer que são seis os pilares ideológicos que suportam o Movimento
Olímpico. São eles: o desporto, a educação, a cultura, o ambiente, o
desenvolvimento e a paz (Cf. Sérgio, M. et al. (2015). Olimpismo &
Complexidade. FMH/UL).
Por isso, e dada a importância do desporto
no mundo moderno, é fundamental que o Movimento Olímpico ganhe
significação social global para além das campanhas de marketing político
circunstancialmente desencadeadas pelos países anfitriões dos Jogos
Olímpicos sem quaisquer consequências em termos de organização do
futuro. Pelo contrário, o futuro e o desenvolvimento do Olimpismo e do
seu movimento, passa por uma reflexão prospetiva acerca da sua dimensão
axiológica passada, presente e futura, de modo a que, todos em conjunto,
possamos dar início à construção de um léxico comum para que nos
possamos entender nos discursos que produzimos.
Note-se que o
Olimpismo é muito mais do que um sistema de princípios, valores,
objetivos e projetos. O Olimpismo é um estado de espírito que integra um
sistema de princípios, valores, objetivos e projetos. É, por isso, um
denominador comum entre culturas que deve respeitar os sete Princípios
Fundamentais da Carta Olímpica (CO), enquanto documento oficial de base,
de natureza constitucional no qual, para além dos Princípios
Fundamentais, constam as Regras e os Textos de Aplicação determinados
pelo Comité Olímpico Internacional (COI) a ser adotados pelo Movimento
Olímpico Internacional. Todos aqueles que, formal ou informalmente,
pertencem ao Movimento Olímpico, a fim de cumprirem a sua função de
difusores do ideal olímpico, devem reger-se pela Carta Olímpica.
No
capítulo relativo aos “Princípios Fundamentais do Olimpismo”, o COI
expressa a sua posição oficial da ideia olímpica com base na educação e
cultura:
“O Olimpismo é uma filosofia de vida que exalta e
combina de forma equilibrada as qualidades do corpo, da vontade e da
mente. Aliando o desporto à cultura e educação, o Olimpismo procura ser
criador de um estilo de vida fundado no prazer do esforço, no valor
educativo do bom exemplo, na responsabilidade social e no respeito pelos
princípios éticos fundamentais universais”.
Enquanto fundador dos
Jogos Olímpicos modernos, Pierre de Coubertin pretendia que o Olimpismo
fosse um projeto desportivo de valor pedagógico, político e social
através do qual os jovens adquiriam habilidades físicas aliadas a
capacidades intelectuais. Para o efeito, a ideia inicial de Coubertin
foi a de integrar o desporto no sistema educativo de maneira a torná-lo
acessível à generalidade das pessoas.
Em Janeiro de 1919, a
poucas semanas do 25º aniversário da fundação do COI, Coubertin, na
qualidade de Presidente desta mesma Instituição, após uma interrupção
forçada devida à I Grande Guerra Mundial, escreveu uma carta dirigida
aos seus membros, na qual propunha que todos os desportos fossem
proporcionados a todos: “All sports for all people”. Quer dizer, “todos
os desportos para todos”.
É neste sentido que integramos o
pensamento de Coubertin no conceito de “consciência coletiva” proposto
por Durkheim. Porque, o Olimpismo, enquanto projeto humanista que é,
obriga a desenvolver um trabalho axiológico de transmissão e difusão dos
valores do desporto enquanto filosofia de vida ao serviço do
desenvolvimento humano.
E termino, neste começo do século XXI,
com as palavras de Pierre de Coubertin, proferidas no discurso da festa
de encerramento do congresso de Paris (1894): “… faço um brinde à ideia
Olímpica, que tem atravessado como um raio de sol omnipotente a névoa
dos tempos e volta para iluminar com luz de alegre esperança os umbrais
do século XX”.
* Doutoranda em Sociologia e Gestão de Desporto, FMH- Universidade de Lisboa
IN "A BOLA"
03/10/17
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