O mesmo sorriso
O meu pai que agora é um velhinho, já não ouve bem e está tão nervoso como um miúdo.
A
senhora no encaminhamento de doentes explica-me tudo enquanto mete em
envelopes as passagens e o voucher do hotel, tudo marcado e acertado,
avião e alojamento. Os bilhetes de comboio e as refeições pagam depois,
traga os recibos e o nib da conta. Em casa, o meu pai está mais nervoso
do que um miúdo por causa do exame que lhe marcaram para Coimbra, é que
tem 81 anos e só conhece o continente das excursões da paróquia.
Telefona-me em alvoroço, acha que é preciso pagar, tem dúvidas porque é de uma geração que desconfia do Estado e ainda não lhe entrou na cabeça a necessidade de ir fazer exames para tão longe. Eu grito ao telemóvel, é que a idade não perdoa e não ouve como antes. E depois lembro-me do antes, quando era novo e cheio de sonhos, quando falava de viagens e dizia que ia tirar a quarta classe e a carta de condução.
Também ia comprar uma furgoneta e fazer-se empreiteiro, daqueles que construíam para vender, havia de fazer chalés, casinhas bem bonitas. Ou talvez desse o salto para França, pagavam bem por lá, depois não faltaria dinheiro por irmos por esse mundo além, quem sabe se íamos todos à Índia, a viagem que lhe estava atravessada desde a tropa, quando Portugal mandava companhias inteiras para proteger Goa, Damão e Diu. As possessões portuguesas na Índia e que eu achava que eram uma só, uma só com um nome comprido.
O meu pai dizia os nomes assim de seguida e, a seguir, falava de tesouros, das riquezas que os soldados traziam, tecidos e ornamentos dourados. E a guerra? Tinha havido guerra, mas o meu pai, a comissão teria acabado antes da invasão e ninguém lhe teria tirado a viagem. E suspirava com um brilho nos olhos, tinha isso de nos entusiasmar com os sonhos dele. As viagens, os livros, os estudos, o saber. O meu pai tinha um apreço pelo saber estranho para um homem que mal sabia ler. Ou talvez fosse por isso, o que sei é que nos levava com ele nos sonhos, a descer num barco a costa de África e a chegar à Índia.
O meu pai que agora é um velhinho, já não ouve bem e está tão nervoso como um miúdo. A viagem não é um passeio, é um exame em Coimbra, longe de casa e dos cantos que conhece de cor, onde se sente bem, protegido, dono de si e de tudo o que vê. Os dias não têm surpresas, há os cães e as galinhas e as tardes no quintal a olhar para o caminho, sossegado, ou a loja, onde estão as ferramentas, tudo bem arrumado para o caso de ser preciso. Ali é rei, decide o que planta, o que colhe ou quando vai dar um passeio, que os médicos recomendam que se ande e, quem olha, não lhe dá 81 anos.
Eu grito ao telemóvel, está tudo tratado, os papéis, que descanse e não pense, que quem tem boca vai a Roma. E vou lá estar, para ouvir e ajudar, vou estar na sala de espera, no comboio e no avião tal e qual como nas tardes de domingo em que me levava a ver a família, os tios, primos e padrinhos que viviam no Curral Velho e era preciso subir muito, ficar quieta, beber e comer só que me davam. E depois ouvir as primas e as tias a dizer que a pequena é trigueira, mas tem o sorriso de Gabriel. E isso ninguém, nem o tempo nos tirou, partilhamos o mesmo sorriso.
Telefona-me em alvoroço, acha que é preciso pagar, tem dúvidas porque é de uma geração que desconfia do Estado e ainda não lhe entrou na cabeça a necessidade de ir fazer exames para tão longe. Eu grito ao telemóvel, é que a idade não perdoa e não ouve como antes. E depois lembro-me do antes, quando era novo e cheio de sonhos, quando falava de viagens e dizia que ia tirar a quarta classe e a carta de condução.
Também ia comprar uma furgoneta e fazer-se empreiteiro, daqueles que construíam para vender, havia de fazer chalés, casinhas bem bonitas. Ou talvez desse o salto para França, pagavam bem por lá, depois não faltaria dinheiro por irmos por esse mundo além, quem sabe se íamos todos à Índia, a viagem que lhe estava atravessada desde a tropa, quando Portugal mandava companhias inteiras para proteger Goa, Damão e Diu. As possessões portuguesas na Índia e que eu achava que eram uma só, uma só com um nome comprido.
O meu pai dizia os nomes assim de seguida e, a seguir, falava de tesouros, das riquezas que os soldados traziam, tecidos e ornamentos dourados. E a guerra? Tinha havido guerra, mas o meu pai, a comissão teria acabado antes da invasão e ninguém lhe teria tirado a viagem. E suspirava com um brilho nos olhos, tinha isso de nos entusiasmar com os sonhos dele. As viagens, os livros, os estudos, o saber. O meu pai tinha um apreço pelo saber estranho para um homem que mal sabia ler. Ou talvez fosse por isso, o que sei é que nos levava com ele nos sonhos, a descer num barco a costa de África e a chegar à Índia.
O meu pai que agora é um velhinho, já não ouve bem e está tão nervoso como um miúdo. A viagem não é um passeio, é um exame em Coimbra, longe de casa e dos cantos que conhece de cor, onde se sente bem, protegido, dono de si e de tudo o que vê. Os dias não têm surpresas, há os cães e as galinhas e as tardes no quintal a olhar para o caminho, sossegado, ou a loja, onde estão as ferramentas, tudo bem arrumado para o caso de ser preciso. Ali é rei, decide o que planta, o que colhe ou quando vai dar um passeio, que os médicos recomendam que se ande e, quem olha, não lhe dá 81 anos.
Eu grito ao telemóvel, está tudo tratado, os papéis, que descanse e não pense, que quem tem boca vai a Roma. E vou lá estar, para ouvir e ajudar, vou estar na sala de espera, no comboio e no avião tal e qual como nas tardes de domingo em que me levava a ver a família, os tios, primos e padrinhos que viviam no Curral Velho e era preciso subir muito, ficar quieta, beber e comer só que me davam. E depois ouvir as primas e as tias a dizer que a pequena é trigueira, mas tem o sorriso de Gabriel. E isso ninguém, nem o tempo nos tirou, partilhamos o mesmo sorriso.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIASDA MADEIRA"
10/09/17
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