A desresponsabilização
do Estado nas creches
As
instituições particulares de solidariedade social (IPSS) têm certamente
um lugar na sociedade, e muitas têm um trabalho meritório, chegando a
lugares que o Estado não alcança. No entanto, nos últimos anos, talvez
décadas, este papel de complementaridade das IPSS face ao Estado social
tem vindo a ser pervertido. A tendência notou-se especialmente durante o
Governo de Passos e Portas, mas é anterior. A Segurança Social
demitiu-se de parte das suas funções, que entregou às IPSS, através de
acordos de cooperação, que cobrem áreas diversificadas: creches, lares,
apoio na pobreza ou na infância.
Esta
transferência de poderes e responsabilidades tem vários problemas. Em
primeiro lugar não é clara ou transparente. As IPSS não têm o mesmo grau
de escrutínio ou obrigação de prestar contas que a Segurança Social. Em
segundo lugar, tem muitas vezes subjacente a transformação da ideia de
solidariedade e emancipação por uma visão caritativa e assistencialista.
Esta transformação ficou clara quando o anterior Governo escolheu
cortar no Rendimento Social de Inserção (RSI) para criar um programa de
cantinas sociais. Em terceiro lugar, nem sempre é mais barata para o
Estado. No caso das cantinas sociais, provou-se que o Estado gastava
mais a pagar às IPSS pelo serviço do que se atribuísse o RSI diretamente
a essas famílias.
Uma das áreas onde
estes problemas são mais flagrantes é nas creches. Até hoje nenhum
Governo foi capaz de garantir a construção de uma rede abrangente de
creches públicas, apesar da sua absoluta necessidade no país. Em vez
disso, o Estado contratualiza com as IPSS a prestação do serviço,
pensando que estas deveriam priorizar o acesso das famílias mais
carenciadas. Acontece que, apesar do Estado pagar 259euro por criança
por mês (1200 milhões ao todo), as creches podem cobrar o preço que
entenderem aos pais. Uma vez que não estão obrigadas a quotas quanto aos
rendimentos das famílias, pode até acontecer que só aceitem crianças de
famílias mais abastadas, cobrando-lhes todo o valor que já recebem do
Estado, duplicando assim a receita. Para além de ser um mau uso de
recursos públicos, é também um mau serviço público.
O
problema não se resolve obrigando estas creches a acolherem apenas as
crianças mais pobres. Isso geraria guetos. Mas também não é justo que as
IPSS possam lucrar com um serviço que é, em última instância, pago pelo
Estado, cobrando valores diferenciados aos pais. A resposta só pode
mesmo ser, neste caso, a construção de uma rede pública de creches,
gerida diretamente pelo Estado.
Mais uma vez, há um lugar para o terceiro setor, em particular as IPSS,
nas respostas que a sociedades deve encontrar para diferentes
necessidades sociais. Mas esse lugar não deve, em caso algum, ser o da
substituição do Estado, ou da sua desresponsabilização na prestação de
serviços públicos universais e igualmente acessíveis a todos. Ainda para
mais quando, tanto a transferência de responsabilidades como a sua
gestão pelas IPSS se faz sem clareza ou escrutínio.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
27/06/17
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